sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

.A história do sequestro do corredor argentino Fangio em Cuba


Enviado por luisnassif, sex, 03/02/2012 - 09:55

Por Paulo F.



Na Gazeta Esportiva



Decadente, hotel usa sequestro de Fangio por grupo de Fidel como atração



Bruno Ceccon Havana (Cuba)



Anfitriões da presidente Dilma Roussef nesta semana, os irmãos Fidel e Raul Castro acompanharam, há 54 anos, o sequestro do argentino Juan Manuel Fangio. Em fevereiro de 1958, o pentacampeão mundial de Fórmula 1 foi raptado pelo "Movimento 26 de Julho" no hall do Hotel Lincoln, em Havana. Decadente, o estabelecimento procura usar o fato como atração.



Na tentativa de desviar o foco do avanço da insurreição comandada por Fidel na ilha desde dezembro de 1956, o ditador Fulgêncio Batista resolveu organizar corridas automobilísticas na capital nos anos de 1957 e 1958. Ganhador da primeira edição, Fangio foi sequestrado às vésperas da prova seguinte e impedido de participar. Desta forma, os revolucionários divulgaram mundialmente o movimento.



p>O Hotel Lincoln, construído em 1926, tem localização privilegiada. A poucos quarteirões do "Malecón", uma espécie de calçadão, o local fica no bairro de "Centro Habana", entre a "Habana Vieja", que abriga a maioria dos pontos turísticos, e a região de "Vedado", a porção mais moderna da cidade (ou menos antiga). A diária, equivalente a cerca de R$ 41,00 com café da manhã incluso, é atraente e os funcionários, solícitos.



No entanto, o hotel de 135 quartos é precário e não consegue justificar as três estrelas que ostenta, algo que a reportagem pôde comprovar em uma visita recente a Havana. Entre outras deficiências, as paredes têm rachaduras e falhas na pintura, as frestas da janela uivam nos momentos de ventania, o chuveiro nem sempre oferece água quente, a tomada exibe fiação aparente e o hóspede pode encontrar lagartixas sobre a cama.



As áreas comuns estão mais bem conservadas, mas também evidenciam a decadência do estabelecimento octogenário. Durante o café da manhã, por exemplo, as formigas se deliciam. No bar do térreo, usado pelos seguidores de Fidel Castro antes do sequestro de Fangio, prostitutas procuram clientes estrangeiros. De acordo com as garotas, é possível realizar o programa no quarto do hotel mediante pagamento de propina ao vigia.



Há duas moedas correntes no país. O chamado "peso conversível" equivale a aproximadamente 25,00 pesos cubanos, valor que corresponde a US$ 1,00. Como o salário mínimo na ilha é de cerca de US$ 10,00, as profissões de alguma maneira ligadas ao turismo são as mais cobiçadas, especialmente em função das gorjetas.



A prostituição, praticamente erradicada no auge do governo revolucionário, é um dos problemas enfrentados por Cuba, seriamente afetada pelo bloqueio comercial imposto pelos Estados Unidos desde 1962 e pelo final da União Soviética, seu principal parceiro econômico, em 1991. Os turistas são frequentemente abordados por garotas de programa e cafetões, inclusive nas imediações do Hotel Lincoln.



Diante da precariedade atual, a solução é apelar ao passado glamouroso. Com a internet incipiente em Cuba, o Lincoln não conta com um site oficial. A Islazul, rede hoteleira que administra o local, descreve todos os seus estabelecimentos em uma página eletrônica e usa o caso como propaganda: "Juan Manuel Fangio, o maior piloto de todos os tempos, se encontrava hospedado no hotel no momento de seu sequestro".



Bruno Ceccon/Gazeta Press





Decadente, Hotel Lincoln tem falhas na pintura dos quartos, banheiro precário e até lagartixa sobre a cama



A menção ao piloto é repetida por alguns dos principais guias turísticos internacionais, como o Lonely Planet, que por sinal chama o argentino erroneamente de "Carlos Fangio". No dia 23 de fevereiro de 1988, exatamente 30 anos depois da ação, o Lincoln instalou uma placa em sua entrada. O sequestro "significou um efetivo golpe propagandístico contra a tirania e um importante estímulo para as forças revolucionárias", diz a inscrição.



O Hotel Lincoln anuncia que o quarto 810, usado por Fangio em 1958, foi transformado em um museu, informação repetida pelos guias turísticos internacionais. No entanto, a habitação é alugada normalmente a um custo de aproximadamente R$ 50,00 diários. Desta forma, os hóspedes interessados em conhecer o local dependem da boa vontade do atual ocupante.



Acompanhada por uma camareira, a reportagem tentou visitar o quarto-museu, propagandeado no hall em que o argentino foi sequestrado. De cueca samba-canção, um hóspede espanhol atendeu à porta, desculpou-se pelos trajes sumários e se disse com torcicolo após uma note mal dormida. Admirador de Fangio, ele fez questão de ficar na habitação 810 e prometeu exibi-la no dia seguinte, algo que não cumpriu.



Google Maps



O tradicional Hotel Lincoln, a poucos metros do Malecón, o calçadão da capital cubana, está bem localizado



O oitavo andar do hotel foi decorado para rememorar o sequestro. Ao deixar o elevador, é possível visualizar um grande pôster que registra o histórico encontro ocorrido em 1981, na volta de Fangio a Havana, entre Fidel Castro, o argentino e Faustino Perez, chefe máximo da operação de 1958. O poema "Sequestro Amável", de Jesus Orta Ruiz, é reproduzido em um painel afixado na parede.



Desde 1958, o hotel serviu de palco para as comemorações alusivas ao sequestro. Em 1993, no 35º aniversário da ação, o Instituto de Turismo de Cuba e o Lincoln promoveram a "Copa Internacional de Kart Juan Manuel Fangio" nas ruas adjacentes. No ano seguinte, realizou-se um encontro entre vários participantes da operação, que ganharam diplomas de reconhecimento da Associação de Combatentes da Revolução.



O Lincoln não oferece as mesmas comodidades das franquias das grandes redes hoteleiras recebidas por Cuba para potencializar o turismo após o final da União Soviética, como a espanhola Meliá e a francesa Accor. Por outro lado, no combalido estabelecimento da década de 1920 os hóspedes convivem com parte da história da Revolução liderada por Fidel Castro.



Na Gazeta Esportiva



Após "sequestro amável", Fangio foi amigo de cubanos até a morte



Bruno Ceccon Havana (Cuba)



Para Juan Manuel Fangio, um "sequestro amável". Para seus captores, uma "retenção patriótica". Impedido por seguidores de Fidel Castro de participar da corrida organizada pelo ditador Fulgêncio Batista em 1958, o argentino pentacampeão mundial de Fórmula 1 reencontrou os algozes repetidas vezes e manteve laços de amizade com alguns deles até sua morte, em 1995.



Com a corrida, Batista pretendia tirar o foco do progresso da insurreição comandada por Castro, o que seria potencializado pelas comemorações do dia 24 de fevereiro, data que marca o começo do processo de independência de Cuba. Os revolucionários chegaram a seguir os passos de Fangio antes da edição de 1957 da prova, vencida pelo argentino e explorada em larga escala pelo ditador, mas o sequestro ficou para o ano seguinte.



"Queríamos chamar a atenção sobre o processo revolucionário cubano e fazer com que o mundo conhecesse a existência da guerrilha na Sierra Maestra e a luta clandestina nas cidades. Em poucas palavras, que se conhecesse mais de Cuba e sua confrontação por meio das armas. Por isso, o sequestro seria uma breve retenção, uma retenção patriótica", explica Arnol Rodriguez, um dos participantes da ação, no livro "Operación Fangio", vendido em sebos de Havana por cerca de R$ 2,50.



Dos 82 guerrilheiros que viajaram do México para Cuba sob as ordens de Fidel Castro, apenas 14 sobreviveram às batalhas com o exército regular após um desembarque desastroso na ilha em dezembro de 1956. Refugiado na Sierra Maestra, região remota da ilha, o comandante soube como se aproveitar da imprensa para fazer propaganda e ganhar o apoio da opinião pública, inclusive no exterior.



Logo em fevereiro de 1957, Castro recebeu o jornalista norte-americano Herbert Matthews, do New YorkTimes. O repórter foi levado ao local do encontro de forma clandestina e retratou o cubano como um líder jovem e carismático. A matéria teve grande repercussão, especialmente porque o governo de Batista assegurava que o revolucionário estava morto. No final de abril, ele concedeu entrevista para a CBS, emissora de TV dos Estados Unidos.



Detido em três ocasiões, Arnol Rodriguez passou mais de seis meses preso e, na época do sequestro, era o responsável pelo setor de propaganda dos revoltosos. Através de contatos na imprensa, ele apurou data e horário do desembarque de Fangio em Havana, além do quarto que o piloto ficaria no Hotel Lincoln. "Havia chegado o momento de um enfrentamento entre a propaganda revolucionária e a propaganda mercenária da ditadura", relatou.



Desta forma, o argentino foi vigiado desde sua chegada ao aeroporto de Havana, no dia 21 de fevereiro de 1958, uma sexta-feira. A princípio, os revolucionários acreditavam que o Hotel Lincoln não era o local adequado para o sequestro e se organizaram para tentar a ação na saída de uma emissora de televisão, mas havia muita gente no local. À noite, o piloto reconheceu o circuito a pé, porém estava fortemente protegido.



Com a proximidade da corrida, os revolucionários resolveram executar a captura no Lincoln. Divididos em três carros, cada um com uma metralhadora, nove seguidores

de Castro se dirigiram ao local. Um deles ligou para o quarto do piloto se passando por um jornalista e apurou que o argentino desceria para o jantar. A porta do elevador abriu-se às 20h40 e Fangio, ao lado de seu empresário, encontrou alguns amigos que o esperavam.




Imediatamente, Manuel Uziel se aproximou do grupo e chamou o piloto. "Para que me quer?", questionou Fangio. "Sou do movimento 26 de Julho e vamos sequestrá-lo", anunciou o cubano. O argentino sorriu e pareceu achar que se tratava de uma brincadeira, mas mudou de ideia ao sentir uma pistola contra suas costelas. Um dos acompanhantes do astro fez menção de reagir e ouviu a ameaça: "se você se mexer outra vez, eu disparo".



ReproduçãoDe volta a Havana em 1981, Fangio (e) reencontra Faustino Perez, chefe da operação do sequestro de 1958



Ao lado do companheiro Primitivo Aguilera, Uziel conduziu Fangio para a rua sob a mira do revólver. O restante do grupo, incluindo uma mulher grávida, protegia a operação do lado de fora. O piloto foi colocado em um carro Plymouth verde e levado até a casa de Uziel, que apresentou o pentacampeão do mundo à mulher e ao filho pequeno.



Como qualquer dano a Fangio seria desastroso para a reputação da guerrilha, os captores procuraram tratá-lo de forma cordial. Ao encontrar o piloto, Faustino Perez, chefe da operação, cumprimentou-o e pediu desculpas, dizendo que "Cuba não estava para festas". "O corredor parecia sereno e chegou a oferecer cigarros aos presentes", relatou Arnol Rodriguez. Colocado em outro veículo, foi levado a uma nova casa, em um bairro de classe média.



Após o sucesso da operação de captura, os revolucionários enviaram a seguinte mensagem a membros da imprensa: "Fala o 26 de Julho. Fangio está em nosso poder, não competirá amanhã". Os captores contataram a embaixada argentina e garantiram que a integridade física do piloto seria preservada, além de solicitarem que a família do astro na Argentina fosse informada.



Fangio jantou na segunda casa e depois conversou com todos os presentes. De acordo com Rodriguez, contou de sua visita a Cuba no ano anterior e se interessou pelas vidas pessoais dos sequestradores, além de demonstrar surpresa com a juventude do grupo e a disposição de lutar. Descontraído, disse que sua mulher já o teria encontrado se estivesse em Havana.



Reprodução



O jornal A Gazeta Esportiva noticiou o sequestro de Fangio em sua edição do dia 25 de fevereiro de 1958



"Ele se mostrava tranquilo e talvez surpreso pelo tratamento oferecido. Era um ambiente aprazível, não isento de certa tensão, que todos nos empenhávamos em encobrir", relatou Rodriguez em seu livro. "Ele nos observava e analisava, na verdade nos esquadrinhava. Alguns de nós fazíamos exatamente o mesmo com ele", escreveu.



No dia seguinte, Fangio recebeu o café da manhã no quarto, tomou banho, fez a barba e vestiu terno. Ao ver os jornais com a notícia do sequestro, teria dito: "se vê que vocês estão organizados e sabem o que querem!". No dia 24 de fevereiro, os revolucionários procuraram colocar o argentino a par do momento político da ilha. Um encontro com jornalistas chegou a ser cogitado, mas a ideia foi descartada em seguida.



Segundo o relato de Rodriguez, o piloto preferiu não acompanhar a prova e apenas ouviu o começo da disputa pelo rádio. Em seguida, sentou-se no terraço e escutou músicas instrumentais. Informado do acidente com vítimas fatais que provocou o final da corrida, ficou seriamente abalado. Os revolucionários queriam libertar Fangio logo depois do evento para evidenciar que a única intenção foi impedir sua participação na disputa.



Os captores combinaram o local da soltura com pessoas ligadas à embaixada argentina. Após certa tensão, o processo de entrega, chefiado por Rodriguez, teve sucesso. "Na hora da devolução, Fangio, quase sorrindo, disse aos três homens que o esperavam com caras serias: 'esses são meus amáveis sequestradores, meus amigos sequestradores'", relatou o cubano. O piloto portava uma carta dirigida ao embaixador, a seus pais e ao povo argentino.



O "Museo de La Revolucion", uma das principais atrações turísticas de Cuba, exibe um texto escrito de próprio punho por Fangio, datado de 24 de fevereiro de 1958, dia de sua soltura. "Esclareço que durante meu sequestro amável o trato foi completamente familiar, com atenções cordiais e somente me pediram desculpas por esta situação, alheia à minha pessoa", diz a mensagem assinada pelo piloto.



Reprodução



Arnol Rodriguez (d) visita Fangio em Balcarce-ARG, sua cidade natal, no ano de 1992



Para os revolucionários, a ação foi um sucesso na medida em que ganharam a simpatia de Fangio e a notícia foi veiculada nos cinco continentes. "É provável que em alguns lugares, determinadas pessoas se inteiraram pela primeira vez da existência de Cuba e souberam que se tratava de um país em luta tenaz por sua soberania, sua liberdade e sua independência", escreveu Arnol Rodriguez.



Em 1981, Fangio voltou a Cuba como membro de uma delegação da Mercedez-Benz para assuntos comerciais e foi recebido no aeroporto por Rodriguez, então integrante do Ministério de Comércio Exterior. Após reconhecer um de seus sequestradores, o já ex-piloto cumprimentou-o afetuosamente. Durante a semana que ficou em Havana, reencontrou outros captores, conheceu Fidel Castro e viu alguns dos logros da Revolução.



Nos anos de 1982 e 1984, Rodriguez foi a Buenos Aires e voltou a encontrar Fangio. Em 1983, Faustino Perez, chefe da operação de sequestro, enviou uma saudação a Fangio com a assinatura "seus amigos sequestradores" para festejar o 25º aniversário da "retenção patriótica". Já em 1992, o argentino mandou condolências pela morte de Perez.



No mesmo ano de 1992, Fangio convidou os captores para o aniversário de seis anos do museu que leva seu nome na cidade de Balcarce, sua terra natal. Na ocasião, Rodriguez conheceu a família do argentino e ofereceu ao acervo do memorial um troféu pela corrida que o piloto não pôde participar. Em 1995, autorizado pela sobrinha do amigo seriamente doente, o cubano foi um dos poucos a visitá-lo. No mesmo ano, Fidel Castro e Rodriguez enviaram coroas de flores ao enterro.





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