.A maneira profissional de combater o crack
Enviado por luisnassif, sab, 07/01/2012 - 08:00
Usuário de crack deve ser introduzido logo ao sistema de saúde
Para especialista, acolhimento sem respaldo médico é "constrangedor"
Por Bruno de Pierro, da Agência Dinheiro Vivo
Na última terça-feira, a Polícia Militar de São Paulo iniciou uma operação para reprimir o tráfico de drogas na região da Cracolândia, no centro da capital. A primeira etapa consistiu na remoção de dependentes que se aglomeravam na região e na limpeza das ruas, com caminhões-pipa. A iniciativa foi batizada de Operação Sufoco, e depois da dispersão dos dependentes químicos, a polícia fecha o cerco para identificar na multidão quais são usuários e quais são traficantes. Os primeiros, se não suportarem a abstinência ou não encontrarem outros locais para obter crack, espera-se que aceitem a assistência social; e o últimos serão presos.
A medida tem sido criticada por especialistas, por promover a dispersão de usuários, que se espalham por outros pontos da cidade. Além disso, a ação ocorre antes da inauguração de um complexo voltado para usuários de crack, com equipamentos de saúde. Segundo a PM, a assistência virá numa próxima etapa. Em comunicado ontem, o prefeito Gilberto Kassab disse que a medida não é “enxugar gelo” e que “já é um avanço elas [as pessoas doentes e dependentes] estarem numa região que tem polícia”.
Para falar sobre o assunto, Brasilianas.org ouviu o psiquiatra, ex-presidente e atual consultor da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas, Carlos Salgado. De Porto Alegre, Salgado explicou a experiência do CAPS-AD que coordena em Venâncio Aires, município do Rio Grande do Sul, e defendeu a reestruturação dos albergues. “Simplesmente fechar albergues, porque ele são ineficientes ou mal organizados, ou mesmo incompetentes, é uma atitude bastante ingênua”. Confira.
Brasilianas.org - Existe hoje no país alguma iniciativa que sirva de modelo no combate ao crack no território urbano?
Carlos Salgado - Acho que infelizmente não. Existem vários esboços de iniciativas, inclusive entrando novamente na política federal, com a presidente Dilma repetindo o que havia dito o presidente Lula, com investimentos e aporte financeiro para uma série de ações, no caso mais recente no nível da assistência. Mas não há nenhum programa consistente focado no uso do crack, que tenha merecido alguma atenção maior. São várias tentativas, e, em geral, elas andam um pouco e são interrompidas, ou são inconsistentes, com algumas coisas que o governo federal tem feito; e aí o resultado acaba sendo bem pobre.
A lógica da iniciativa colocada em prática na cidade de São Paulo coloca, basicamente, que primeiro deve ser feita a descentralização do território tomado pelo crack. Depois, é feita a seleção daqueles que são traficantes e aqueles que são meros usuários. E estes, por fim, serão pressionados a buscar ajuda devido á abstinência. Há equívocos nessa abordagem por etapas?
A proposta geral é esta, uma sequência de ações, que poderiam ser em blocos, mas parece que a proposta é mesmo sequencial, e começa com medida repressiva para dispersar o tráfico. Sem dúvida que a relação entre uso e disponibilidade é íntima. Reduzindo a disponibilidade, a pessoa tende a usar menos e os mais dependentes vão procurar em outros pontos de venda, e os menos dependentes vão tolerar a diminuição da disponibilidade. Em si, é uma medida feliz, faz sentido: reprimir o tráfico, reduzir a disponibilidade, diminuir o uso e, portanto, os problemas.
No meio do caminho, porém, observando as pessoas mais dependentes, que sofrerão mais com a indisponibilidade da droga, vão se expor mais e buscar em outro ponto. E o traficante também tenderá a migrar para outro ponto, a não ser que o crime organizado que chega até o usuário seja desorganizado e abordado verticalmente. Parece-me que esse tipo de medida, de ir ao campo direto de venda, é das mais ingênuas, porque não é o traficante da ponta que determina se a droga estará plenamente disponível ou não, mas sim o sujeito que organiza a produção e coloca no mercado uma grande quantidade de droga. Mais do que pela ação policial direta, mas sim pela inteligência da polícia é que se poderia reprimir, e aí sim teríamos um resultado mais efetivo.
Mas já é um começo, uma ação inicial este de se abordar no território de conflito?
Existe a repressão, diminui-se a disponibilidade da droga, o usuário mais afoito vai seguir correndo atrás da droga e, no meio do caminho, tem-se uma reorganização daquele ambiente. E aproveita-se esse momento de reorganização para se introduzir o assistente social, que faz a abordagem inicial do indivíduo, contando com uma hipótese que é verdadeira que é a de que o indivíduo que é usuário é ambivalente, ou seja, ele gostaria, também, de se ver livre da compulsão. E aí ele fica mais sensível à abordagem quando a droga está menos disponível. Mas mais importante é introduzir o representante do sistema de saúde, desde que ele tenha respaldo, ou seja, para onde ele possa conduzir o usuário de droga. Caso contrário, ele fica numa posição bem constrangedora, o que é o mais comum nessas abordagens de rua.
Essa abordagem, da forma como é praticada no país, consegue absorver as demandas sociais, emotivas e psicológicas do usuário? Qual a experiência em Porto Alegre?
Olhando para o que estamos acompanhando, e como nós da ABEAD somos ouvidos com o propósito de formular políticas públicas - apesar dessa nova administração federal estar ouvindo menos a associação -, observamos que, claramente, a intenção é reduzir custos. Aliás, reduzir custos em saúde de uma forma geral e, em dependência química e saúde mental, muito mais ainda. A idéia é começar a oferecer um profissional lá na ponta, que seja mais viável para o admistrador público, e que não necessariamente seja o mais adequado para a demanda do indivíduo usuário de droga. Nesse sentido, vemos armada uma organização, no nível federal, da nação como um todo, de várias ações que nos parecem bastante ingênuas.
Realmente, o sujeito que dá o suporte, o primeiro atendimento, tipicamente é um profissional pouco preparado. Bem intencionado, certamente, e entusiasmado e guiado pela ideologia de que qualquer profissional bem intencionado pode ajudar o dependente químico, e não precisa ser um modelo medicalizado ou com a presença de um profissional médico, o que está errado. É um problema médico, e tem que ter um aporte. E aí a resposta do governo federal, às vezes implícita, é a de que isso é muito caro. Claro que é muito caro! Para dar uma boa atenção em cardiologia, por exemplo, a gente precisa de cardiologistas, não dá para fazer acolhimento de indivíduos que estão infartando. Acolher é uma pequena parte do processo, o que acaba sendo tomado como um todo. E o dependente do crack é um paciente que demanda uma atenção muito intensa e realmente, e infelizmente, medicalizada.
Mas e a experiência no Rio Grande do Sul?
O que tenho acompanhado aqui de nossa experiência é um serviço no interior do Estado, um CAPS-AD (Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas) do qual sou supervisor. É um serviço organizado, com equipe multidisciplinar, numa cidade do interior, chamada Venâncio Aires, que fica na região fumageira (grande produção de tabaco), por ironia. Lá, temos uma equipe completa, com psiquiatra e um time inteiro, até o estagiário de psicologia, de educação-física; todo mundo trabalhando integrado, com reuniões semanais. Um serviço montado nesses termos, não importa o nome que ele tenha - seja Ambulatório de Dependência Química, seja CAPS-AD -, é um modelo bem estruturado em que os profissionais de diversas áreas interagem, respeitando os campos de ação um dos outros.
É um caminho multidisciplinar,e que não borra as margens e as fronteiras de um profissional com o outro. O psicólogo consegue agir plenamente, o psiquiatra, a assistente social, os técnicos de enfermagem, o professor de educação-física, até o porteiro tem uma instrução, para tolerar, manejar os pacientes. Essa é a proposta original de um ambulatório com nível de complexidade crescente; no caso do CAPS-AD já é de uma complexidade maior, pois é bem especializado. No caso do CAPS-AD de Venâncio Aires, a equipe conta com uma retaguarda razoável de atenção hospitalar, que está crescendo, e também, lá outra ponta, unidade terapêutica, para aqueles indivíduos que se desintoxicam e precisam de atendimento de longo prazo. è portanto um ambiente modelar, e que tenho certeza que em algumas cidades do interior de São Paulo tem sido reproduzido. Esse sistema falha quando tiramos desse sistema o psiquiatra, um psicólogo, um enfermeiro, fazendo a equipe emagrecer. Aí a coisa não funciona.
Em São Paulo, no ano passado, a prefeitura realizou um desmonte de vários albergues para sem-teto. Qual a importância que os albergues tem na organização do território e na condução de iniciativas como essa?
Essa é uma questão bastante relevante. Quando temos um ambiente estruturado, as relações humanas funcionam melhor. Exemplo: uma escola bem estruturada, os alunos difíceis são melhor conduzidos; quando a escola é mais frágil, com direção mal estabelecida, esse aluno difícil se torna mais difícil. Voltando para a grande comunidade, aquele indivíduo que dentro do tecido social está mal sustentado, mal engajado, não tem seu foco de presença, por exemplo o sem-teto, o indigente - e dentre esses indivíduos, há casos psiquiátricos que são banidos do grande hospital, ou então saem do programa De Volta para Casa, do SUS, e voltam para a rua - muitos apresentam psicopatologias. Quando mantemos um ambiente razoavelmente organizado, aumentam as chances desses indivíduos chegarem a alguma forma de reorganização de sua vida.
Então, simplesmente fechar albergues, porque ele são ineficientes ou mal organizados, ou mesmo incompetentes, é também uma atitude bastante ingênua. Preparar, equipar e treinar equipes dentro desses albergues, ou outras formas alternativas, isso sim é feliz. Acredito que no país inteiro há várias iniciativas equivocadas, em termos até de respeito ao indivíduo que procura ajuda. Mas em lugar de fechá-las, a primeira atitude do poder público é de equipá-las, adequá-las e fiscalizá-las, para que possam chegar o mais próximo possível das determinações da Anvisa, que são claras e bem interessantes.
O senhor falou de um modelo medicalizado. Em contrapartida, temos outro modelo, também exitoso, que é o das organizações anônimas, como Álcoolicos Anônimos e Narcóticos Anônimos. Nessa abordagem, temos o doente falando de sua doença com outros doentes, tirando do foco a figura do especialista e da autoridade médica.
Clinicamente, essa questão é mais relevante do que já conversamos até agora. A relação do indivíduo com o álcool, o tabaco e outras drogas é de natureza complexa. Envolve a variável fundamental, que é a disponibilidade, ou seja, é uma doença que depende totalmente do ambiente, sem a droga o sujeito não consegue ser dependente; mas nos seus desdobramentos, realmente tem uma complexidade muito grande: questões econômicas, questões do indivíduo e, claro, questões ambientais facilitadoras ou inibidoras do uso.
Do ponto de vista da terapêutica, a gente também tem um arsenal variável, adaptável e ajustável a um dado indivíduo. Por exemplo, eu sou um psiquiatra que atende em clínica privada, já atendi pacientes do SUS por 13 anos dentro de um hospital público, e o modelo é o mesmo. è preciso oferecer mais de uma opção, atendimento de grupo, atendimento individual, diagnóstico esclarecedor da condição e também o grupo de auto-ajuda. O grupo de auto-ajuda, muitas vezes, para alguns indivíduos, acaba sendo o melhor recurso, mesmo para indivíduo muito sofisticado, muito rico, com todas as outras opções.
Agora, esse percurso, que é objeto de relato, é interessante, porque não é que o indivíduo tenha falhado em todos os outros recursos. na verdade, é um acúmulo de tentativas que leva ao desfecho final. Eu recebo pacientes que passaram nas mãos de vários outros colegas, e eles me dizem “o outro doutor tentou me ajudar e não conseguiu”. penso que, na verdade, cada um conseguiu um pouco, pois como é complexo e repetitivo [o tratamento], quando se acumula várias tentativas, na maioria das vezes o desfecho é positivo.
Enviado por luisnassif, sab, 07/01/2012 - 08:00
Usuário de crack deve ser introduzido logo ao sistema de saúde
Para especialista, acolhimento sem respaldo médico é "constrangedor"
Por Bruno de Pierro, da Agência Dinheiro Vivo
Na última terça-feira, a Polícia Militar de São Paulo iniciou uma operação para reprimir o tráfico de drogas na região da Cracolândia, no centro da capital. A primeira etapa consistiu na remoção de dependentes que se aglomeravam na região e na limpeza das ruas, com caminhões-pipa. A iniciativa foi batizada de Operação Sufoco, e depois da dispersão dos dependentes químicos, a polícia fecha o cerco para identificar na multidão quais são usuários e quais são traficantes. Os primeiros, se não suportarem a abstinência ou não encontrarem outros locais para obter crack, espera-se que aceitem a assistência social; e o últimos serão presos.
A medida tem sido criticada por especialistas, por promover a dispersão de usuários, que se espalham por outros pontos da cidade. Além disso, a ação ocorre antes da inauguração de um complexo voltado para usuários de crack, com equipamentos de saúde. Segundo a PM, a assistência virá numa próxima etapa. Em comunicado ontem, o prefeito Gilberto Kassab disse que a medida não é “enxugar gelo” e que “já é um avanço elas [as pessoas doentes e dependentes] estarem numa região que tem polícia”.
Para falar sobre o assunto, Brasilianas.org ouviu o psiquiatra, ex-presidente e atual consultor da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas, Carlos Salgado. De Porto Alegre, Salgado explicou a experiência do CAPS-AD que coordena em Venâncio Aires, município do Rio Grande do Sul, e defendeu a reestruturação dos albergues. “Simplesmente fechar albergues, porque ele são ineficientes ou mal organizados, ou mesmo incompetentes, é uma atitude bastante ingênua”. Confira.
Brasilianas.org - Existe hoje no país alguma iniciativa que sirva de modelo no combate ao crack no território urbano?
Carlos Salgado - Acho que infelizmente não. Existem vários esboços de iniciativas, inclusive entrando novamente na política federal, com a presidente Dilma repetindo o que havia dito o presidente Lula, com investimentos e aporte financeiro para uma série de ações, no caso mais recente no nível da assistência. Mas não há nenhum programa consistente focado no uso do crack, que tenha merecido alguma atenção maior. São várias tentativas, e, em geral, elas andam um pouco e são interrompidas, ou são inconsistentes, com algumas coisas que o governo federal tem feito; e aí o resultado acaba sendo bem pobre.
A lógica da iniciativa colocada em prática na cidade de São Paulo coloca, basicamente, que primeiro deve ser feita a descentralização do território tomado pelo crack. Depois, é feita a seleção daqueles que são traficantes e aqueles que são meros usuários. E estes, por fim, serão pressionados a buscar ajuda devido á abstinência. Há equívocos nessa abordagem por etapas?
A proposta geral é esta, uma sequência de ações, que poderiam ser em blocos, mas parece que a proposta é mesmo sequencial, e começa com medida repressiva para dispersar o tráfico. Sem dúvida que a relação entre uso e disponibilidade é íntima. Reduzindo a disponibilidade, a pessoa tende a usar menos e os mais dependentes vão procurar em outros pontos de venda, e os menos dependentes vão tolerar a diminuição da disponibilidade. Em si, é uma medida feliz, faz sentido: reprimir o tráfico, reduzir a disponibilidade, diminuir o uso e, portanto, os problemas.
No meio do caminho, porém, observando as pessoas mais dependentes, que sofrerão mais com a indisponibilidade da droga, vão se expor mais e buscar em outro ponto. E o traficante também tenderá a migrar para outro ponto, a não ser que o crime organizado que chega até o usuário seja desorganizado e abordado verticalmente. Parece-me que esse tipo de medida, de ir ao campo direto de venda, é das mais ingênuas, porque não é o traficante da ponta que determina se a droga estará plenamente disponível ou não, mas sim o sujeito que organiza a produção e coloca no mercado uma grande quantidade de droga. Mais do que pela ação policial direta, mas sim pela inteligência da polícia é que se poderia reprimir, e aí sim teríamos um resultado mais efetivo.
Mas já é um começo, uma ação inicial este de se abordar no território de conflito?
Existe a repressão, diminui-se a disponibilidade da droga, o usuário mais afoito vai seguir correndo atrás da droga e, no meio do caminho, tem-se uma reorganização daquele ambiente. E aproveita-se esse momento de reorganização para se introduzir o assistente social, que faz a abordagem inicial do indivíduo, contando com uma hipótese que é verdadeira que é a de que o indivíduo que é usuário é ambivalente, ou seja, ele gostaria, também, de se ver livre da compulsão. E aí ele fica mais sensível à abordagem quando a droga está menos disponível. Mas mais importante é introduzir o representante do sistema de saúde, desde que ele tenha respaldo, ou seja, para onde ele possa conduzir o usuário de droga. Caso contrário, ele fica numa posição bem constrangedora, o que é o mais comum nessas abordagens de rua.
Essa abordagem, da forma como é praticada no país, consegue absorver as demandas sociais, emotivas e psicológicas do usuário? Qual a experiência em Porto Alegre?
Olhando para o que estamos acompanhando, e como nós da ABEAD somos ouvidos com o propósito de formular políticas públicas - apesar dessa nova administração federal estar ouvindo menos a associação -, observamos que, claramente, a intenção é reduzir custos. Aliás, reduzir custos em saúde de uma forma geral e, em dependência química e saúde mental, muito mais ainda. A idéia é começar a oferecer um profissional lá na ponta, que seja mais viável para o admistrador público, e que não necessariamente seja o mais adequado para a demanda do indivíduo usuário de droga. Nesse sentido, vemos armada uma organização, no nível federal, da nação como um todo, de várias ações que nos parecem bastante ingênuas.
Realmente, o sujeito que dá o suporte, o primeiro atendimento, tipicamente é um profissional pouco preparado. Bem intencionado, certamente, e entusiasmado e guiado pela ideologia de que qualquer profissional bem intencionado pode ajudar o dependente químico, e não precisa ser um modelo medicalizado ou com a presença de um profissional médico, o que está errado. É um problema médico, e tem que ter um aporte. E aí a resposta do governo federal, às vezes implícita, é a de que isso é muito caro. Claro que é muito caro! Para dar uma boa atenção em cardiologia, por exemplo, a gente precisa de cardiologistas, não dá para fazer acolhimento de indivíduos que estão infartando. Acolher é uma pequena parte do processo, o que acaba sendo tomado como um todo. E o dependente do crack é um paciente que demanda uma atenção muito intensa e realmente, e infelizmente, medicalizada.
Mas e a experiência no Rio Grande do Sul?
O que tenho acompanhado aqui de nossa experiência é um serviço no interior do Estado, um CAPS-AD (Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas) do qual sou supervisor. É um serviço organizado, com equipe multidisciplinar, numa cidade do interior, chamada Venâncio Aires, que fica na região fumageira (grande produção de tabaco), por ironia. Lá, temos uma equipe completa, com psiquiatra e um time inteiro, até o estagiário de psicologia, de educação-física; todo mundo trabalhando integrado, com reuniões semanais. Um serviço montado nesses termos, não importa o nome que ele tenha - seja Ambulatório de Dependência Química, seja CAPS-AD -, é um modelo bem estruturado em que os profissionais de diversas áreas interagem, respeitando os campos de ação um dos outros.
É um caminho multidisciplinar,e que não borra as margens e as fronteiras de um profissional com o outro. O psicólogo consegue agir plenamente, o psiquiatra, a assistente social, os técnicos de enfermagem, o professor de educação-física, até o porteiro tem uma instrução, para tolerar, manejar os pacientes. Essa é a proposta original de um ambulatório com nível de complexidade crescente; no caso do CAPS-AD já é de uma complexidade maior, pois é bem especializado. No caso do CAPS-AD de Venâncio Aires, a equipe conta com uma retaguarda razoável de atenção hospitalar, que está crescendo, e também, lá outra ponta, unidade terapêutica, para aqueles indivíduos que se desintoxicam e precisam de atendimento de longo prazo. è portanto um ambiente modelar, e que tenho certeza que em algumas cidades do interior de São Paulo tem sido reproduzido. Esse sistema falha quando tiramos desse sistema o psiquiatra, um psicólogo, um enfermeiro, fazendo a equipe emagrecer. Aí a coisa não funciona.
Em São Paulo, no ano passado, a prefeitura realizou um desmonte de vários albergues para sem-teto. Qual a importância que os albergues tem na organização do território e na condução de iniciativas como essa?
Essa é uma questão bastante relevante. Quando temos um ambiente estruturado, as relações humanas funcionam melhor. Exemplo: uma escola bem estruturada, os alunos difíceis são melhor conduzidos; quando a escola é mais frágil, com direção mal estabelecida, esse aluno difícil se torna mais difícil. Voltando para a grande comunidade, aquele indivíduo que dentro do tecido social está mal sustentado, mal engajado, não tem seu foco de presença, por exemplo o sem-teto, o indigente - e dentre esses indivíduos, há casos psiquiátricos que são banidos do grande hospital, ou então saem do programa De Volta para Casa, do SUS, e voltam para a rua - muitos apresentam psicopatologias. Quando mantemos um ambiente razoavelmente organizado, aumentam as chances desses indivíduos chegarem a alguma forma de reorganização de sua vida.
Então, simplesmente fechar albergues, porque ele são ineficientes ou mal organizados, ou mesmo incompetentes, é também uma atitude bastante ingênua. Preparar, equipar e treinar equipes dentro desses albergues, ou outras formas alternativas, isso sim é feliz. Acredito que no país inteiro há várias iniciativas equivocadas, em termos até de respeito ao indivíduo que procura ajuda. Mas em lugar de fechá-las, a primeira atitude do poder público é de equipá-las, adequá-las e fiscalizá-las, para que possam chegar o mais próximo possível das determinações da Anvisa, que são claras e bem interessantes.
O senhor falou de um modelo medicalizado. Em contrapartida, temos outro modelo, também exitoso, que é o das organizações anônimas, como Álcoolicos Anônimos e Narcóticos Anônimos. Nessa abordagem, temos o doente falando de sua doença com outros doentes, tirando do foco a figura do especialista e da autoridade médica.
Clinicamente, essa questão é mais relevante do que já conversamos até agora. A relação do indivíduo com o álcool, o tabaco e outras drogas é de natureza complexa. Envolve a variável fundamental, que é a disponibilidade, ou seja, é uma doença que depende totalmente do ambiente, sem a droga o sujeito não consegue ser dependente; mas nos seus desdobramentos, realmente tem uma complexidade muito grande: questões econômicas, questões do indivíduo e, claro, questões ambientais facilitadoras ou inibidoras do uso.
Do ponto de vista da terapêutica, a gente também tem um arsenal variável, adaptável e ajustável a um dado indivíduo. Por exemplo, eu sou um psiquiatra que atende em clínica privada, já atendi pacientes do SUS por 13 anos dentro de um hospital público, e o modelo é o mesmo. è preciso oferecer mais de uma opção, atendimento de grupo, atendimento individual, diagnóstico esclarecedor da condição e também o grupo de auto-ajuda. O grupo de auto-ajuda, muitas vezes, para alguns indivíduos, acaba sendo o melhor recurso, mesmo para indivíduo muito sofisticado, muito rico, com todas as outras opções.
Agora, esse percurso, que é objeto de relato, é interessante, porque não é que o indivíduo tenha falhado em todos os outros recursos. na verdade, é um acúmulo de tentativas que leva ao desfecho final. Eu recebo pacientes que passaram nas mãos de vários outros colegas, e eles me dizem “o outro doutor tentou me ajudar e não conseguiu”. penso que, na verdade, cada um conseguiu um pouco, pois como é complexo e repetitivo [o tratamento], quando se acumula várias tentativas, na maioria das vezes o desfecho é positivo.
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