segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Mario Quintana

ALMA ERRADA
Há coisas que a minha alma, já tão mortificada, não
[admite:
assistir novelas de TV
ouvir música Pop
um filme apenas de corridas de automóvel
uma corrida de automóvel num filme
um livro de páginas ligadas
porque, sendo bom, a gente abre sofregamente a dedo:
espátulas não há... e quem é que hoje faz questão de
[virgindades...
E quando minha alma estraçalhada a todo instante pelos
[telefones
fugir desperada
me deixará aqui,
ouvindo o que todos ouvem, bebendo o que todos bebem,
comendo o que todos comem.
A estes, a falta de alma não incomoda. (Desconfio até
que minha pobre alma fora destinada ao habitante de
[outro mundo).
E ligarei o rádio a todo o volume,
gritarei como um possesso nas partidas de futebol,
seguirei, irresistivelmente, o desfilar das grandes paradas
[do Exército.
E apenas sentirei, uma vez que outra,
a vaga nostalgia de não sei que mundo perdido...



*************

Num país de nostálgicos nevoeiros,
de paisagens em lenta mutação,
largarei de repente o meu bordão...
E hão de pasmar os outros caminheiros!

E andando como a lua nos outeiros
ao encontro da lenta procissão,
pousarias a mão na minha mão...
enamorados sempre... e sempre companheiros!

E diante de tão doces aparências
quem diria que em duas existências
nos separara o mundo - anos inteiros?

E, sentados à sombra de uns olmeiros,
trocaríamos falsas confidências...
cheias de sentimentos verdadeiros!



in: Baú de Espantos ( extraído do livro "Quintana de Bolso - Rua dos Cataventos & Outros Poemas ") - L&PM Pocket, vol. 71 -págs. 94/95.

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