O Clarín, por Eric Nepomuceno
Enviado por luisnassif, seg, 04/06/2012 - 13:47
Da CartaMaior
Argentina: o que há por trás de um jornal chamado Clarín (II)
"Até hoje lembro os rostos de meus torturadores. Porém, nenhum desses rostos, nenhum desses olhares, me persegue e amedronta mais em meus pesadelos que o olhar de Héctor Magnetto me dizendo que ou assinava a venda de Papel Prensa, ou eu e minha filha seríamos mortas", relatou Lidia Papaleo, viúva de David Graiver, ex-proprietário de Papel Prensa, diante de um tribunal. Héctor Magnetto era e continua sendo o principal executivo do grupo Clarín. O artigo é de Eric Nepomuceno.
Eric Nepomuceno, de Buenos Aires
Na América Latina, não é nada incomum – aliás, muito pelo
contrário – que, durante regimes de exceção, que é como os delicados de
vocabulário e os débeis de caráter chamam as ditaduras, grandes conglomerados de
comunicações tenham surgido, se consolidado e se transformado em impérios.
É curioso reparar como a forma em que esses grupos e organizações
foram criados corresponde a uma clara divisão do mercado, cuidando sempre de
reservar espaço para que atuem, na prática, como monopólios. Assim, passam a
impor suas vontades e suas visões do mundo, que no fundo são o eco exato do que
dita a voz do poder econômico. Dizem não depender do governo, o que, a
propósito, é mentira. Nada dizem de sua dependência vital, direta, do poder
econômico, sua verdadeira verdade.
Observar essa espécie de fenômeno comum às nossas comarcas mostra
a clara existência de um modelo, implantado aqui e acolá com leves variações,
mas sempre ao redor do mesmo mecanismo.
Por trás da furiosa oposição que o grupo Clarín faz ao governo de
Cristina Fernández de Kirchner existe uma história linear, típica desse
mecanismo.
O grupo apoiou sem pejos uma ditadura espúria, com todos os
ingredientes comuns às nossas comarcas (favorecimento do poder econômico à custa
do atropelo dos direitos civis mais elementares, sedução e cumplicidade de
parcelas das classes médias, omissão diante da atuação brutal dos agentes
encarregados de impor o terrorismo de Estado, através de prisões ilegais,
torturas, assassinatos e desaparecimentos de opositores). Nesse período, se
fortaleceu enormemente.
Assim, o retorno da democracia encontrou o grupo consolidado, e
oscilando levemente ao sabor dos novos ares. Soube ser crítico na medida exata –
medida limite – durante todos os governos seguintes, observando sempre que não
fossem tocados de forma direta seus interesses (ou seja, os do poder econômico
preponderante, o interno e o externo) e que as manchas do passado não fossem
trazidas à luz do sol.
Até que tropeçou com um governo de outra tintura, que resolveu
correr o risco de enfrentar os tais interesses e atiçar o passado. A crescente
polarização que a Argentina vive nos últimos anos não faz mais que fortalecer
esse embate.
O espaço para a crítica clara e frontal – e o governo de Cristina
Kirchner merece e deve ser criticado em copiosos aspectos – perdeu lugar para a
confrontação aberta, sem regras e princípios. A manipulação e a distorção de
fatos e informações passaram a ser o pão de cada dia.
Acontece que, muitas vezes, não basta com ocultar ou sabotar
informação. A vida tem seus próprios caminhos, e esses caminhos frequentemente
escapam do controle dos que se acreditam capazes de controlar a própria
realidade.
Agora mesmo tornou a saltar ao sol uma das fontes de tamanha
fúria, um dos grandes nós desta questão: o passado do Clarín. Trata-se de uma
série de revelações que o jornal já não consegue mais tapar.
Dia desses, e uma vez mais, Lidia Papaleo, viúva de David
Graiver, falou. Agora, diante de um tribunal. E tornou a repetir, com mais
detalhes que antes, o que viveu depois da misteriosa morte do marido no México,
em agosto de 1976 (a ditadura de Videla tinha escassos cinco meses de vida), num
desastre de avião jamais explicado.
Agora, e de novo, ela contou, com todas as letras, como foi coagida a vender ao Clarín as ações com que Graiver, um financistas astuto e brilhante, controlava a Papel Prensa, única fornecedora e distribuidora de papel-jornal no país.
Contou como foi presa depois – depois – de ter fechado o negócio. Os compradores foram o desaparecido jornal ‘La Razón’, o ‘La Nación’, e, levando a maior parte, o ‘Clarín’.
A certa altura de seu depoimento, Lidia Papaleo contou das sevícias que padeceu. Muitas vezes, depois de vexada, era largada estendida no chão da cela ou da sala de tormento. ‘E então eles vinham e cuspiam e ejaculavam em cima de mim’, contou ela.
Antes que o juiz interrompesse a sessão para que o público abandonasse o recinto e ela pudesse continuar com seu rosário de horrores, Lidia disse:
Agora, e de novo, ela contou, com todas as letras, como foi coagida a vender ao Clarín as ações com que Graiver, um financistas astuto e brilhante, controlava a Papel Prensa, única fornecedora e distribuidora de papel-jornal no país.
Contou como foi presa depois – depois – de ter fechado o negócio. Os compradores foram o desaparecido jornal ‘La Razón’, o ‘La Nación’, e, levando a maior parte, o ‘Clarín’.
A certa altura de seu depoimento, Lidia Papaleo contou das sevícias que padeceu. Muitas vezes, depois de vexada, era largada estendida no chão da cela ou da sala de tormento. ‘E então eles vinham e cuspiam e ejaculavam em cima de mim’, contou ela.
Antes que o juiz interrompesse a sessão para que o público abandonasse o recinto e ela pudesse continuar com seu rosário de horrores, Lidia disse:
– Até hoje lembro os rostos de meus torturadores. Porém, nenhum
desses rostos, nenhum desses olhares, me persegue e amedronta mais em meus
pesadelos que o olhar de Héctor Magnetto me dizendo que ou assinava a venda de
Papel Prensa, ou eu e minha filha seríamos mortas.
Pois bem: Héctor Magnetto era e continua sendo o principal
executivo do grupo Clarín. Foi quem, naquele distante 1976, e antes do sequestro
e das torturas de Lidia Papaleo, se reuniu com ela, e foi diante dele que ela
capitulou.
Meses depois, assim que a transação foi sacramentada, Lidia
acabou sendo levada para os calabouços do horror. Por quê não a prenderam antes?
Por uma questão legal: havia uma lei que passava diretamente às mãos do Estado
as propriedades dos subversivos presos. E a ditadura não queria se apoderar da
fábrica Papel Prensa: queria compensar os bons serviços prestados ao regime
pelos três jornais contemplados.
Por quê a prenderam? Por achar que havia mais patrimônio a ser
espoliado. E porque era mulher, tinha sido casada com um financista acusado de
cuidar do dinheiro dos Montoneros e, enfim, porque prender, violar e vexar era
parte da rotina do sistema que compensou o silêncio cúmplice e interessado dos
Magnettos da vida.
Assim começou a fortaleza e o império do grupo Clarín. Depois
vieram as concessões de rádio e televisão em cascata, depois veio todo o
resto.
Essa a história que há por trás da história. Os mesmos métodos
aplicados contra Lidia Papaleo continuam sendo aplicados no dia-a-dia do
grupo.
Nisso, pelo menos, há que se reconhecer uma consistente
coerência: os que controlam o grupo Clarín jamais deixaram de ser o que foram.
Continuam agindo como agiram, e cuidando, sempre, de jamais se aproximar da
perigosa linha que marca o início de um território que desconhecem, chamado
dignidade.
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