sábado, 26 de maio de 2012

A consciência política em Holywood


Por Assis Ribeiro
Quando Holywood cultivava sua fibra social
Por Édouard Waintrop, no Diplomatique
No entreguerras, alguns atores e diretores norte-americanos muito populares misturavam à sua ligação aos valores tradicionais uma clara sensibilidade progressista. O percurso do cineasta John Ford é testemunho disso
Na época do New Deal, nos anos 1930, dizer-se de esquerda ou demonstrar qualquer inclinação pelo Partido Comunista tinha um efeito positivo em alguns círculos de Los Angeles. Afinal, uma das consequências da passagem para o cinema falado tinha sido a chegada maciça de escritores vindos da costa leste, frequentemente oriundos da imigração europeia, e também de europeus que fugiam do nazismo.
Essa tendência inquietou rapidamente o Federal Bureau of Investigation (FBI), que chegou a montar um dossiê contra o diretor John Ford. Isso pode parecer estranho para aqueles que, lembrando-se dos filmes que o irlando-americano realizou depois da Segunda Guerra Mundial e de seus acentos marciais, veem nele um cineasta reacionário.
.....O interesse do FBI por esse filho de um organizador do Partido Democrata de Portland foi suscitado pelo nascimento da associação dos cineastas, a Screen Directors Guild (SDG), em 1935. Cineasta reconhecido, Ford era um de seus fundadores. Nenhum de seus sucessos dos anos 1910 e 1920 tinha, no entanto, traído a menor sensibilidade social: encontramos neles mais uma ideologia mid-west, que celebrava as viris virtudes rurais diante daquilo que o teórico populista do século XIX, William Cobbett, chamava de as “frivolidades afeminadas da metrópole”.1
Durante a crise de 1929, Ford perdeu um pouco de dinheiro, mas continuou trabalhando e ganhando bem a vida. Depois, os problemas, principalmente financeiros, que pesavam sobre Hollywood se tornaram mais consistentes. Ford começou a criticar uma produção que era orientada apenas para a rentabilidade. Ele se radicalizou.
O diretor não chegou a se mostrar, como o ator James Cagney, a estrela desses anos, como um líder do Partido Comunista norte-americano:2 continuou animado por um anticomunismo sem falhas. Mas aos amigos, como o roteirista Philip Dunne, um homem de esquerda, confiou que era partidário do presidente Franklin Roosevelt, o artífice do New Deal.
Em dezembro de 1935, o cineasta King Vidor, um grande nome do cinema dos anos 1920 e 1930, recebeu em casa uns amigos. Ford se encontrava entre eles. Esses homens, alguns deles cineastas consideráveis, tinham a reputação de individualistas loucos. Isso não os impediu de criar, com um investimento de US$ 100 por cabeça, a SDG, “a fim de proteger”, segundo as palavras do próprio Ford, “a integridade de sua profissão”. Vidor foi eleito presidente. A iniciativa não foi aplaudida pelos donos dos estúdios.
A época foi ainda marcada pela Grande Depressão. Em todo o país, o patronato se mostrava agressivo contra os sindicatos e procurava questionar as conquistas sociais. Hollywood não escapava. Em março de 1934, a Associação dos Produtores de Filmes, em parceria com a Academy of Motion Pictures, tinha decidido impor reduções salariais de até 50%. Os sindicatos haviam protestado; pela primeira vez, em 13 de março, os técnicos pararam de trabalhar. O conflito foi curto e seu fim favorável aos grevistas. Foi esse sucesso que parece ter convencido alguns diretores a se organizar. Sua SDG, formada depois da associação dos atores (Screen Actors Guild) e a dos roteiristas (Screen Writers Guild), era considerada menos à esquerda que suas predecessoras. Ela, no entanto, incomodava os patrões das majors, que a acusavam de ser inspirada pelos comunistas...
Ford participou com fervor dos primeiros anos da SDG como tesoureiro. Exprimiu sua solidariedade com os outros assalariados dos estúdios, denunciou o desemprego que devastava o mundo do cinema e se opôs aos bancos que, segundo ele, eram quem dava as ordens atrás dos mogulshollywoodianos e organizavam a crise “para baixar os salários para o nível de 1910”. Em 1935, começou também seu curto, mas real, período de engajamento político.
Todo o tempo, Ford tinha sido movido por uma verdadeira repugnância contra o establishment. Acrescente-se a isso a influência dos roteiristas Dudley Nichols e Philip Dunne, notoriamente progressistas, assim como suas discussões com o ator Will Rogers, que vinha do interior da América e defendia posições políticas originais. Satirista, crítico das transformações da vida norte-americana tanto em cena como na cidade, Rogers, que reivindicava suas raízes indígenas, tinha quase sido candidato à presidência dos Estados Unidos em 1932. No cinema, no qual ele iniciou carreira em 1918, esse homem magro, de cabelos grisalhos e sorriso tímido era, logo atrás de Shirley Temple, o ator que atraía mais público para as salas.
Os valores que ele defendia eram parecidos com os do People’s Party, que tinha surgido no fim do século precedente e que, mesmo tendo desaparecido depois, sobrevivia no coração de alguns “conservadores de esquerda”. Anticapitalista, antirracista, antiautoritário e vinculado aos ideais pioneiros, esse partido desconfiava do desenvolvimento econômico e do sistema salarial, que julgava incompatíveis com a liberdade e a democracia norte-americana. Ele defendia uma república de pequenos proprietários, de cooperativas, e uma maior igualdade. Nessa linha, o ator cultivava um bom senso popular, professava respeito pela tradição, pelos valores morais simples, desconfiava da política quando se afastava dos cidadãos, rejeitava o puritanismo e mostrava um grande apetite por justiça social. Ford lhe deu o papel principal em três filmes:Doctor Bull (1933), Judge Priest (1934) e Steamboat round the bend (1935), mistos de comédia e drama, injustamente esquecidos. O ator participou da escrita do roteiro. Nos dois últimos, fato raríssimo para a época, ele deu a réplica a Stepin’ Fetchit, um ator negro, seu alter ego para o humor. Rogers morreu em um acidente de avião em 1935. O diretor continuou fiel às ideias do amigo – ao menos por algum tempo.
Pró-operário e democrático
No ano seguinte, Ford adaptou O delator, um romance de seu primo Liam O’Flaherty, um irlandês de esquerda. Dirigiu em seguida, para a RKO, Jornadas amargas,depois voltou para a Fox, dirigida por Darryl F. Zanuck. As relações com esse produtor autoritário foram inicialmente tempestuosas; depois, os dois homens se domaram. Zanuck admirava Ford, e este se sentia bem em uma empresa dirigida por um homem paradoxal, ao mesmo tempo republicano e sensível aos assuntos sociais. “Com ele, Ford rodou seus filmes diferentes, mais diretos, mais emocionantes. Tanto por gosto quanto por obrigação, ele se concentrou na história norte-americana e em assuntos com forte conotação social. Entre 1935 e 1941, ele conheceu um triunfo artístico com No tempo das diligênciasA mocidade de LincolnAs vinhas da iraComo era verde o meu vale.”3 No primeiro filme – Stagecoach na versão original –, Ford se entregava a uma crítica social afiada, com uma bela caricatura de um banqueiro carcomido, massacrando alegremente os índios. No segundo – Young mister Lincoln–, ele celebrava os ideais de tolerância e a pessoa de Abraham Lincoln. No terceiro, adaptação do célebre romance de John Steinbeck, ele fustigava a injustiça social; no último, celebrava a classe operária por meio dos mineradores.
O engajamento pró-operário e democrático de Ford não se manifestou apenas em seus filmes. Em 1936, opondo-se ao apoio da Igreja ao levante militar de extrema direita contra o governo espanhol legítimo, esse estranho católico participou da fundação do Comitê dos Artistas de Cinema para Ajudar a Espanha Republicana. Estava rodeado por seu amigo Dudley Nichols e pelo romancista Dashiell Hammett, autor doFalcão maltês e de Seara vermelha, que trabalhava como roteirista em Hollywood.4 Nesse grupo figurava também Lester Cole, que em 1948 seria um dos “Dez de Hollywood”, um grupo de roteiristas, produtores e cineastas condenados à prisão por terem se recusado a testemunhar sobre seu pertencimento ao Partido Comunista.
Quando Ernest Hemingway, autor do comentário de The Spanish earth, rodado por Joris Ivens em apoio aos republicanos, veio a Hollywood levantar fundos, Ford doou uma ambulância. Ele manteve também uma correspondência com seu sobrinho, Bob Ford, que tinha atravessado o Atlântico para juntar-se às brigadas internacionais. O cineasta o felicitou por sua coragem e se declarou “definitivamente socialista e democrata – sempre de esquerda”. Acrescentou, no entanto, que o que estava acontecendo na União Soviética naquele momento (as grandes eliminações, o processo de Moscou) o tinha convencido de que o comunismo também não era a solução.
Em 1938, Ford foi eleito vice-presidente do Motion Picture Democratic Committee, fundado para lutar contra o fascismo e o racismo e apoiar o movimento pelos direitos cívicos. Hammett era o presidente. O pacto germano-soviético de 1939 fez rapidamente esse comitê se dividir em dois blocos opostos, antes de enfraquecer a esquerda hollywoodiana como um todo.
A época estava mudando. A direita conservadora tinha retomado fôlego. A Comissão das Atividades Antiamericanas acabara de ser criada; a guerra era uma ameaça. Ford iria se engajar completamente no Office of Strategic Services (OSS), o ancestral da Central Intelligence Agency (CIA) – primeiro por antifascismo, depois por patriotismo. Ele terminou com o título de almirante.
Em 1944, ele demonstrou um anticomunismo revigorado ao aderir, desde a sua criação (com Clark Gable, Gary Cooper...), à muito direitista Motion Picture Alliance. Dava as costas, assim, a seus amigos dos anos 1930. Como escreveu Joseph McBride: “Ele tinha passado quatro anos na companhia dos oficiais superiores e se uniu à causa do OSS, o que levou a uma mudança profunda de suas opiniões políticas”.5 Isso não impediu, no entanto, sob o macarthismo, que Ford recusasse a caça às bruxas contra os comunistas. Ele até criticou aqueles entre seus colegas que, como Cecil B. DeMille, foram cúmplices.

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