O centenário de Luiz Gonzaga

Por Assis Ribeiro
Luiz Gonzaga

Ilustração: Werner Schulz

Revista E, No SESC

No ano do centenário de Luiz Gonzaga, o baião, gênero que consagrou o sanfoneiro, mantém destaque no cenário musical e mostra que permanece vivo na MPB
“Eu vou mostrar pra vocês/ Como se dança o baião/ E quem quiser aprender/ É favor prestar atenção”. Depois desse manifesto lançado na canção Baião, ninguém ficou alheio ao novo gênero que Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira acabavam de apresentar em 1946. O ritmo estourou, conquistou multidões, colocou o Nordeste no cenário da música popular brasileira e ainda hoje influencia gerações.
A canção foi gravada pela primeira vez pelo conjunto Quatro Ases e Um Coringa, da gravadora Odeon. A participação de Gonzaga, ou Lua, como era conhecido, restringiu-se a acompanhar o grupo com sua sanfona. A música estourou  e, em 1950, Lua gravava a sua versão. Assim, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira consagravam-se o rei e o doutor do baião, respectivamente.
Apesar do sucesso, Lua não foi o primeiro a levar a música nordestina para o sul do país. Antes dele, outros tentaram. Exemplo disso é o sucesso Luar do Sertão, consagrada composição de João Pernambuco com letra de Catulo da Paixão Cearense. Além de Lauro Maia, maestro e compositor cearense, que introduziu o balanceio, ritmo produzido pelos conjuntos de zabumba, sanfona, pífaro e triângulos do Nordeste. Mas nenhum deles alcançou a mesma projeção de Luiz Gonzaga.
O rojão, como também é chamado o gênero criado por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, nasceu da tradição popular, de um pequeno trecho musical executado pelas violas dos repentistas durante os intervalos entre um e outro desafio ou à espera da inspiração, como explica o historiador José Ramos Tinhorão no livro Pequena História da Música Popular – Da Modinha ao Tropicalismo (Art Editora, 1986).
“Quando eu toquei o baião para ele (Humberto Teixeira), saiu a ideia de um novo gênero. Mas o baião já existia como coisa do folclore... O que não existia era uma música que caracterizasse o baião como ritmo”, declarou Lua à revista Veja, em 1972, sobre o processo de estilização do novo tipo de canção popular e, principalmente, como ritmo de dança.
Momento certo
A partir da década de 1950, o processo de migração crescia de forma acelerada e, duas décadas depois, o Brasil era um país urbano. Nesse contexto, Gonzaga encontrou o momento e contexto favoráveis à divulgação da música nordestina: o baião, o xaxado, o coco, o xote...
“Ele trouxe um novo modo de olhar para o sertão, o Nordeste, a cidade, a migração e a condição do migrante”, explica a professora da Universidade Federal do Ceará e autora de ?Luiz Gonzaga, o Sertão em Movimento (Editora Annablume, 2000), Maria Sulamita de Almeida Vieira. A música Lá no Meu Pé de Serra, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, demonstra como a dupla falava diretamente aos milhares de nordestinos que deixavam a sua terra natal. Lá no meu pé de serra/ deixei ficar meu coração / Ai, que saudades tenho/ Eu vou voltar pro meu sertão...
Não foram poucos os músicos que contribuíram para levar o forró nordestino ao grande público. Armados com a santa trindade do baião: sanfona, zabumba e triângulo, inúmeros trios surgiram e seguiram o exemplo de Luiz Gonzaga. E o seu reinado só cresceu. A cantora Carmélia Alves foi aclamada como a “rainha do baião”. Claudete Soares tornou-se a princesa e Luiz Vieira, o príncipe do baião.

Foto: Arquivo Dominique Dreyfus/Editora 34/Divulgação

Repercussão internacional
O baião também rompeu fronteiras nos anos de 1950, em especial por conta de O Cangaceiro, de Lima Barreto (1953), que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes como melhor filme de aventura e também menção honrosa pela trilha sonora, que entre outras trazia a toada Muié Rendera, música de Zé do Norte, interpretada por Vanja Orico.
Na mesma década, o compositor norte-americano Burt Bacharach veio ao Brasil acompanhando a atriz alemã Marlene Dietrich. “Ele ouviu o baião e se encantou. Entre suas canções de sucesso dos anos de 1960 está Do You Know The Way to San Jose. É muito forte a presença do baião. Só falta o triângulo”, comenta o jornalista e historiador, Paulo César de Araújo, autor do livro Eu Não Sou Cachorro, Não (Editora Record, 2005).
O baião instrumental de Waldir Azevedo, Delicado, teve cinco versões gravadas em Buenos Aires, vendendo mais de 130 mil cópias em toda a Argentina, segundo Tinhorão. A música também passou a fazer parte do repertório dos maestros norte-americanos Stan Kenton e Percy Faith.
Considerado um grande divulgador do novo gênero, Humberto Teixeira buscou promovê-lo no exterior, levando à Europa caravanas de músicos brasileiros, mas sem grandes resultados. Como analisa Tinhorão, o ritmo estilizado por Luiz Gonzaga (assim como ocorreu com a Bossa Nova) não tinha condições de competir com a indústria norte-americana de discos e com a novidade do rock, que tinha em Elvis Presley seu maior ícone. Somente na década de 1980, Gonzaga, já consagrado pelo público e pela crítica, iria apresentar sua obra nas grandes casas de espetáculo de Paris.
Pra onde tu vai, baião?
Depois de rodar o país e fazer muito sucesso, o fim dos anos de 1960 não trouxe bons ventos ao baião. O rádio já estava em declínio. Começava a era da televisão. E, no Brasil desenvolvido, urbano, propagado por Juscelino Kubistchek, a música nordestina perdeu espaço.
Outro nordestino, esse de Juazeiro, na Bahia, entrava em cena e já anunciava que algo novo estava por vir. Era João Gilberto, que em 1959 lançou Chega de Saudade, seu primeiro disco com duas músicas: a que dá nome ao álbum e Bim Bom: “É só isso o meu baião / E não tem mais nada não / O meu coração pediu assim, só...”.
Além da Bossa Nova, que chegava com força, havia ainda os cabeludos da Jovem Guarda. Sem espaço na TV, nos jornais e nas rádios das capitais, Luiz Gonzaga se refugiou no interior do país, onde sua música ainda era valorizada. Gravou, vendeu disco, tocava em circos, comícios e ganhou menos dinheiro, mas não sem reclamar: “Pra onde tu vai, Baião? / Eu vou sair por aí / Tu vais por que, Baião? / Ninguém me quer mais aqui”, canção de Sebastião Rodrigues e de João do Vale.

Foto: Divulgação

Este último já havia sido parceiro de Lua em 1957, com O Cheiro de Carolina e mais tarde seria reconhecido com suas músicas de protesto, em especial por Carcará, que teve interpretação brilhante de Maria Bethânia no teatro Opinião, ao abordar o tema da migração dos nordestinos.
Outro exemplo de resistência foi o Xote dos Cabeludos, de Gonzaga e José Clementino: “Atenção senhores cabeludos / Aqui vai o desabafo de um quadradão / Cabra do cabelo grande
Cinturinha de pilão / Calça justa bem cintada / Costeleta bem fechada Salto alto, fivelão / Cabra que usa pulseira / No pescoço medalhão / Cabra com esse jeitinho / No sertão de meu padrinho / Cabra assim não tem vez não...”.
O baião demorou a ser valorizado. Na avaliação de Paulo César de Araújo, Gonzaga alcançou grande sucesso popular, ficou na memória afetiva das pessoas, vendeu muitos discos, mas o reconhecimento por uma elite intelectual veio quando ele já era sexagenário. “O bom era a Época de Ouro da MPB, que vai de 1930 a 1945, com nomes como Noel Rosa, Wilson Batista, Cartola e Nelson Cavaquinho. Quando surge a Bossa Nova, em 1959, o baião ficou no meio, entre a tradição e a modernidade. Com isso passou a ser tratado como um momento menor da nossa música”, lamenta o jornalista.
A volta da Asa Branca
Mas, se o próprio João Gilberto citou o baião ao lançar a sua bossa, talvez nem tudo estivesse perdido para Luiz. No final da década de 1960, os festivais traziam novos nomes, muitos deles do Nordeste, que foram influenciados pelo furacão Luiz Gonzaga.
“Ele foi para o Brasil o que Elvis foi para os americanos. Sem dúvida, ele é um dos gigantes da nossa música. Está no mesmo patamar que João Gilberto e Pixinguinha”, compara Paulo César. Em 1968, os baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil já traziam Luiz Gonzaga em sua memória afetiva e o declararam em diversas entrevistas. Com isso, o baião ganhou o aval de dois jovens expoentes da MPB.
Além disso, um boato do jornalista Carlos Imperial contribuiu para que o velho Lua voltasse à mídia. Circulava a notícia de que os Beatles haviam regravado Asa Branca. Mas quem retomou o clássico foi Caetano Veloso, ao lançar na Inglaterra o seu primeiro disco concebido e gravado no exílio. No repertório, seis canções em inglês, com exceção de Asa branca, na qual Caetano exprime profunda tristeza por estar longe do Brasil. Luiz Gonzaga e o baião voltam ao cenário da MPB.
A semente já havia sido plantada. Isso porque a geração de músicos que surge na década de 1970 cresceu ouvindo o gênero perpetuado por Gonzaga. Na lista, destacam-se Fagner, Belchior, Elba Ramalho, Zé Ramalho, Morais Moreira, Alceu Valença, Milton Nascimento, Dominguinhos, entre outros.
Até no rock, Gonzaga vai deixar sua marca. O baiano Raul Seixas apresenta em sua música uma mistura de rock com baião, deixando clara a influência de Elvis e Gonzaga em sua obra: “Tenho 48 quilo certo 48 quilo de baião / Num vou cantar como a cigarra canta / Mas desse meu canto eu não lhe abro mão / Num vou cantar como a cigarra canta / Mas desse meu canto eu não lhe abro mão / Let me sing, let me sing / Let me sing my rock’n’roll...”.
Desde que surgiu, o baião esteve presente nos mais diferentes momentos da MPB, como na Bossa Nova, no Tropicalismo e no Pop Rock Nacional. “A música de Gonzaga continua aí, influenciando direta ou indiretamente as novas gerações”, defende Paulo César de Araújo. As músicas do rei influenciaram o movimento Manguebeat na década de 1990, com Chico Science e a Nação Zumbi, Cordel do Fogo Encantado, Mestre Ambrósio, Lenine, Zeca Baleiro, Paralamas do Sucesso, Marisa Monte, Marcelo Jeneci e tantos outros.
Homenagem ao Nordeste
Programação celebra diversidade da cultura da região de origem do rei do baião
O ano de 2012 vem coroar o centenário do nascimento de Luiz Gonzaga. Nas unidades do Sesc as comemorações já começaram com shows, culinária, espetáculos de dança, filmes e literatura. O Nordeste, que tantas vezes serviu de inspiração para Luiz Gonzaga, foi homenageado no mês de maio.
No Sesc Santos, o chef Francisco Rebelo promoveu a degustação do pudim de tapioca e do baião de dois. “Nosso objetivo é promover a vivência da cultura nordestina e, ao mesmo tempo, homenagear o rei do Baião”, comenta a nutricionista do programa Mesa Brasil no Sesc Santos, Fabíola Freire.
Em junho, grandes músicos vão animar as noites do Sesc Pinheiros, nomes como Alceu Valença, Trio Virgulino, Anastácia e Vanessa da Mata prestarão sua homenagem ao rei do baião. Outro destaque da programação é a conversa com o escritor e pesquisador Onaldo Quiroga sobre a vida e obra do cantor e compositor Luiz Gonzaga.
Quem gosta de dançar não pode perder Os Ritmos de Gonzagão. No repertório uma diversidade de ritmos: baião, forró, choro, maracatu nação, coco, xaxado, marcha, frevo, ciranda, boi, xote, caboclinhos e quadrilha.
Para os cinéfilos, o Sesc Santo André exibe no mês de julho Labirinto do Brasil (2004), documentário sobre a vida de Glauber Rocha; Pan-cinema Permanente (2008), sobre as composições de Waly Salomão, com os tropicalistas Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia; e O Homem que Engarrafava Nuvens (2008), documentário musical que conta a vida de Humberto Teixeira.


A trajetória do Rei

Luiz Gonzaga foi responsável por difundir o baião e a cultura nordestina pelo Brasil afora
O caminho do futuro rei do baião, Luiz Gonzaga – nascido em Exu, sertão de Pernambuco em 1912, e conhecido como Lua –, começou a ser traçado quando ele deixou de servir o exército depois de nove anos e passou a ganhar a vida com a sanfona. Em 1939, nos bares do Mangue, bairro mais “quente” do Rio de Janeiro, tocava de tudo, de blues a fox trot.
Um dia, um grupo de cearenses pediu que apresentasse alguma coisa lá do seu pé de serra. O sanfoneiro atendeu aos pedidos e fez grande sucesso. Daí em diante, voltou às suas origens nordestinas e passou a incluir no repertório tudo o que aprendeu com seu pai, Januário – o sanfoneiro mais famoso de Exu.
Em 1941, gravou o primeiro disco pela RCA Victor e quatro anos depois já tinha seu próprio programa na Rádio Nacional. Apesar do sucesso, seus discos ainda eram todos instrumentais. Somente em 1946, após simular um contrato com a Odeon, conseguiu o aval de sua gravadora para também cantar.
Lua já fazia sucesso com Dezessete e Setecentos e Dança Mariquinha, feita com a parceria de Miguel Lima. Mas o que ele queria mesmo era encontrar um parceiro ideal para dar cabo de um objetivo: cantar as coisas do Nordeste. E, apesar do talento, Miguel não era essa pessoa.
Para seguir com seus planos, Gonzaga propôs uma parceria com Lauro Maia. Ele não aceitou, mas recomendou que procurasse seu cunhado, o advogado cearense Humberto Teixeira. Quando se encontraram, em apenas dez minutos, os dois compuseram No Meu Pé de Serra. “Eu senti que estava nas mãos do autor que sempre sonhara”, disse Luiz à jornalista francesa Dominique Dreyfus, autora de Vida do Viajante: A Saga de Luiz Gonzaga (Editora 34, 1996).
A parceria rendeu muitos sucessos, como Assum Preto, Juazeiro e Asa Branca. Lançada em 1947, esta última, sem dúvida, tornou-se a música mais famosa de Gonzaga, reconhecida por sintetizar o drama da seca e a saudade do migrante nordestino, e rendeu ao rei do baião a participação no filme Este Mundo é um Pandeiro (1947), de Watson Macedo.
Depois do sucesso de Asa Branca, no final da década de 1940, Luiz Gonzaga seguiu para Exu, sua terra natal. De passagem no Recife, um futuro médico o procurou. Era Zé Dantas com a música Vem Morena, que deixou o rei do baião encantado. Com medo de perder a mesada do pai, que pagava a faculdade de medicina, ele pediu que seu nome fosse ocultado pelo sanfoneiro. Anos mais tarde, já no Rio de Janeiro e trabalhando no Hospital do Servidor, Zédantas – como assinava suas músicas – não largou a medicina nem a música.
Enquanto isso, a parceria de Gonzaga com Humberto Teixeira já não era a mesma. Este assumia, em 1952, o cargo de deputado. Nessa época era lançado o último disco assinado pelos dois, com as músicas Respeita Januário e Légua Tirana. Era a hora e a vez de Zédantas. O trabalho em conjunto resultou em muitos sucessos, como O Xote das Meninas, Sabiá, Riacho do Navio.
“Essa parceria trouxe elementos de crítica social e do protesto”, avalia o jornalista e historiador Paulo César de Araújo, ao citar A Volta da Asa Branca e Vozes da Seca: “Seu doutô os nordestinos / Têm muita gratidão / Pelo auxílio dos sulistas / Nesta seca no sertão / Mas doutô uma esmola / A um home qui é são / Ou lhe mata de vergonha / Ou vicia o cidadão...”.
Depois de passar um período quase esquecido, o rei foi reconhecido por grandes nomes da MPB, recebeu homenagens e gravou muitos duetos com seus discípulos, como Carmélia Alves, Dominguinhos, Elba Ramalho, Fagner e Milton Nascimento. Apresentou-se em Paris no Zénith, Olympia e na Grande Halle de La Villette. Em 1984, recebeu o Prêmio Shell, com o qual, antes dele, somente Pixinguinha, Dorival Caymmi e Tom Jobim haviam sido agraciados.
E voltou a gravar músicas inéditas e fazer sucesso com elas, em especial com os discos Tá Danado de Bom e Forró de Cabo a Rabo. O rei do baião faleceu em 1989. Mas como ele mesmo cantou: “Luiz Gonzaga não morreu / Nem a sanfona dele desapareceu...”.
Em 2012, em homenagem ao seu centenário, deve ser lançado, no segundo semestre, Gonzaga – de Pai para Filho, novo longa de Breno Silveira, mesmo diretor de Dois Filhos de Francisco (2005). O filme pretende retratar a relação entre o sanfoneiro Luiz Gonzaga e seu filho, o cantor e compositor Gonzaguinha (1945-1991).