quarta-feira, 12 de outubro de 2011

AO MESTRE COM CARINHO


Todo tempo que eu viver só me fascina você, Cartola

No momento em que o Centro Cultural Cartola, contribuiu para que o Samba Carioca fosse alçado à categoria Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, e no ano em que se comemora os cem anos de Angenor de Oliveira, o Cartola, trazer à tona o universo lítero-musical desse compositor constitui uma atividade dupla: de resgate e de seu reconhecimento como representante mais autêntico da música popular brasileira e um dos pioneiros no processo de criação das escolas de samba. Homem do morro e da cidade baixa, do asfalto e da Mangueira, leitor de Guerra Junqueiro e de Olavo Bilac, lavador de carros e funcionário público, foi fiel à verde-e-rosa e ao eterno aprendizado do sentimento, da bondade e da dignidade.



O samba trilha um caminho que vai da marginalidade ao mainstream, adaptando-se, evoluindo, dialogando, mas nem sempre mantendo sua identidade. Cartola produziu dentro de seu tempo, carregado de seus infortúnios, compôs, no seu ritmo, no âmbito de sua individualidade incorruptível, talvez as mais belas canções de nosso repertório musical. Sentimento e poesia, mais que letra e canção, harmonizou profusão e qualidade, manteve-se fiel ao seu labor poético, à sua cultura, ao seu lirismo inato e inalienável.



Meu querido avô, Cartola, foi nos meus 14 anos que aprendi com você a importância do conhecimento, do trabalho e da dignidade. Essa foi a maior herança que você me deixou. Naquela época não entendia tão bem a sua grandeza, mas fui seguindo seus conselhos e determinações. Com o tempo os papéis foram se invertendo, recebi sem sentir um simples bastão, passei a cuidar de você, do seu corpo magro, do um peito carente, que poucos percebiam existir por traz do mito. Aos 18 anos, ganhei meu primeiro carro, um Fiat 147, todos os seus amigos souberam do orgulho que tinha por ter conseguido me dar esse presente, na verdade, era sua a realização. Quando concluí a primeira faculdade você já não estava entre nós. Durante quinze anos, acordei às 5 horas da manhã, cursei várias faculdades, construí a minha história, mas sempre me mantive fiel a manter viva e difundir tanto a sua arte quanto os ensinamentos de vida. Minha avó Zica já dizia, pior que ser pobre é não saber fazer a vida valer a pena.



É triste e lamentável, no momento em que nos sacrificamos na luta difícil e diária em manter viva sua obra e seus ensinamentos, passados mais de 30 anos de seu falecimento e do público reconhecimento do trabalho em seu nome realizado, eu seja obrigada a ter que esclarecer publicamente que os direitos autorais deixados por Você, meu amado Avô, geridos com grande dificuldade por minha saudosa Avó, minha mãe e eu, foram a nós legados por testamento como forma de assegurar a sua preservação, e, desta forma, evitando que o suor de Vocês fosse transformado em “pó”, o que significaria claro prejuízo não a nós, mas a cultura brasileira. Enfrentar um pleito oportunista, sem fundamento e extemporâneo, provocado por pessoa originalmente sem qualquer vínculo familiar e tornado filho adotivo pela sua compaixão e de minha Vó, não tem sido fácil, mas, honrando a tradição de luta de nossa família (e do samba), iremos transpor esse obstáculo e fazer valer a verdade/vontade deixada por Você.



Sei que fui sua neta querida, afinal você foi não só referência de dignidade e bondade, mas minha mais íntima referência e a quem presto não só muitas homenagens, mas minha profunda gratidão, exercício que faço há 28 anos. E, portanto, todo o tempo que eu viver, vou cantar e contar suas glórias. No mais que a justiça se faça, com rapidez, a fim de que seja evitada a desconstrução de sua memória, e que a justiça cumpra tua vontade.



Da sua neta escolhida, Nilcemar Nogueira.

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