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Uma crônica de amor e desamor
Enviado por luisnassif, seg, 21/01/2013 - 13:00
Por Nilva de Souza
Do Diário do Centro do Mundo
“Não gosto de você por preferir ver tv a fazer sexo”
KIKA SALVI
Uma crônica de amor e desamor de autoria da jornalista e escritora paulista Kika Salvi
Não gosto de você porque não há calor no seu olhar. Porque vocêcome demais, se preocupa muito com comida, e quando não está comendo, está pensando em comer. E se não está pensando, está gastando calorias, com ginástica, para poder comer ainda mais.
Não gosto de você porque sua vida é meio besta, modorrenta, dedicada à TV, ao sono e a encher a pança. Não gosto de você por beber tanto que me afasta, porque começa de manhã, quando na praia, e só encerra quando cai, de sono e excesso etílico-goumet.
Não gosto de você porque se interessa em demasia pelas guerras, e por tudo quanto tenha potencial destruidor: aviões de guerra, submarinos, tornados, maremotos. E porque dirige como fosse o dono do pedaço, desprezando infelizes com seus carros mixurucas, tão inferiores à sua máquina – um “verdadeiro avião”. Você acredita no direito de passar por cima de tudo e de todos que estejam à sua frente (e que ousem lá ficar, você tem que ser sempre o abre-alas da auto-estrada).
Não gosto de você porque, quando bebe, se enternece, até beira a afeição, mas normalmente é um tanto frio (eu detesto homens frios). Porque bebe e se lembra de fumar, e parece uma chaminé de detritos gasosos, baforando sua fumaça fedorenta no ambiente e estragando meu cabelo tão lavado pra ser sua.
Não gosto de você por não dar beijo no escurinho do cinema, e voltar sua atenção todinha para o filme, enquanto palpito de vontade de um abraço sem-vergonha.
Não gosto de você por preferir comer a fazer sexo, ver TV a fazer sexo, ler a fazer sexo, dormir a fazer sexo, ou não fazer porra nenhuma a fazer sexo, enquanto queimo ao seu lado encenando boa companhia. Não gosto de você por roncar alto, mais ainda quando bebe, e viver anunciando que é o silêncio em pessoa quando dorme.
Não gosto de você por ser travado, e porque não é tarado (ao menos não por mim). Porque não te excito facilmente, e porque não brinca com meu corpo. E porque acaba o amor e vai correndo se lavar, e quando volta pega o livro da cabeceira em vez de ficar me namorando.
Não gosto de você por ter muito dinheiro e liberdade, não é apegado a nada e vive planejando uma viagem. Porque nunca está aqui, comigo, e sempre em busca de uma certa transcendência que nem o álcool nem os prazeres vão te dar, nem os livros ou o cinema, nem a casa sempre cheia de supostas amizades. Nada disso vai tapar os seus buracos, não percebe? Seu retrato é desespero, e não sou chave suficiente para entrar por essa porta.
Não gosto de você porque é volúvel, muda de idéia o tempo todo (e assim me desampara). Mas acima de tudo não gosto de você por não ter sofrido com a ausência, disso que eu chamava de amor e queria tanto oferecer. Porque não me pediu para ficar, porque não se apaixonou e me fez crer que estava quase (existirá um meio-termo?). Você gosta mais de plantas, e da Lua, e da horta, do que gosta de mim. É assustadoramente solto na vida, e afugenta seus demônios num ócio de riquinho, entediado, sempre ao sol, sempre regado a bebida e com mulher ao lado, de enfeite, seja eu ou qualquer outra (você tem sempre companhia, embora nunca seja intenso, e nunca está acompanhado).
Você dizia me adorar, que eu era importante, que o fazia sentir coisas que nunca tinha sentido, e que descobriu-se diferente do que sempre acreditou, que eu fazia bem. Depois me desprezou, deixou que eu fosse embora dizendo que era certo, melhor agora que depois, que eu me “machucaria ainda mais”. E você, não sentiu nada? Não gosto de você por tudo isso, e por não lamentar a minha perda, enquanto me debato e desespero com a sua.
Há uma semana terminamos. E hoje desagüei o choro que a semana inteira controlei. Choro doído, de saudade do abraço, de ouvir a voz ao telefone, da mão quente me alisando noite adentro. Chorei por não sentir mais o seu cheiro, tão gostoso, tão perfeito, misturado com o meu quando fomos amorosos e carnais. Chorei de medo de nunca mais ser abraçada enquanto durmo, você sempre me abraçava e eu sempre percebia, mesmo dizendo que dormia a sono solto. Chorei de dor por não ser amada por você, que me cobria de gentilezas mas nunca foi íntimo, e eu sabia, de algum jeito, que isso tudo ia acabar.
Tentava acreditar que as coisas iam melhorar, que com algum tempo você acabaria se entregando, e me amando, e seria parte indivisível da minha vida. Chorei porque penso em você o tempo todo, tentando não pensar, e quase morro quando acho que para você foi um alívio. Eu pedia demais, você me disse, e depois desconversou, alegando brincadeira, mas eu sabia que mentia. Não estava em você aquilo tudo que eu queria, e que sentia mesmo sem correspondência.
Ando na rua com muito medo de te ver, e ensaio caras e trejeitos que disfarcem a minha dor. Quero estar linda e ensolarada quando a gente se cruzar, e jamais saio de casa aparentando desconsolo. Ensaio risos, frases animadas e postura de altivez quando por dentro estou secando, e não me canso de torcer para que o encontro aconteça.
E quando passa um carro igual ao seu, meu peito explode de aflição. Porque eu sei que se você me tratar mal, se for frio ou impessoal, eu vou chorar na sua frente. E se me tratar com doçura, vou lamentar ainda mais a sua perda. E se for artificial, vou lamentar ter te amado. E se não quiser voltar pra mim, vou agarrar no seu pescoço implorando que repense, que me veja, que enxergue o que há de bom (é tanta coisa, meu amor) e me peça pra voltar.
Uma vez você escreveu que não gostava muito de mim, e tampouco gostava bastante, mas que gostava demais. Eu quase respondi que nós dois sabíamos que isso era mentira, porque gostar demais é perder o controle sobre o afeto, é um adorar desembestado, e nunca vi em seu sentimento algo que assim se parecesse. Se eu tivesse dito, aquele dia, o que pensei, o que teria acontecido? Talvez você tivesse encerrado o que só depois eu encerrei, com o seu consentimento tão isento, tão sem dor e hesitação. Doeu tanto.
Sei que deus não existe, pelo menos nunca me deu bola, mas rezo a deus que isso passe. Que eu não pense em você todo segundo do relógio, e sonhe a noite inteira, e acorde desolada. Se ele existe, essa dor há de passar, e de cessar o quanto antes, porque meu coração se tornou carne moída, não dá conta de levar pro corpo o oxigênio que preciso. É isso, estou beirando a asfixia, e você tão satisfeito, alheio a tudo e distante, em sua vida regradinha e sem lastro, sem nenhum vínculo importante. Você respira livremente, talvez até já olhe em volta, posso jurar que está tranqüilo, e eu num abismo tão doído. E não me canso de pensar, afinal de contas, por que é que eu gosto tanto de você?
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