quarta-feira, 16 de janeiro de 2013


Pelas conexões das existências, por Pedro Martins Freire
Enviado por luisnassif, qua, 16/01/2013 - 14:49
Por Assis Ribeiro
Do Diário do Nordeste
Pelas conexões das existências
"A Viagem" faz uma incursão pela natureza humana e celebra o amor à liberdade como o sentido de tudo
Pedro Martins Freire
Antes de abrirmos uma análise de "A Viagem", torna-se importante que o cinéfilo saiba que este não é, definitivamente, um filme comum. É preciso estar preparado para assisti-lo. Redobrar a atenção e estar disposto a seguir as linhas de épocas que o enredo oferece, já que se desenvolve em seis tempos diferentes. Propositadamente lento (pelo menos o vejo assim), isso pode fazê-lo se desinteressar - e se desligar do enredo -, e até mesmo deixar o cinema. A recomendação do analista é: deixe-se levar pelo filme. Não se precipite. O melhor está por vir.

O filme, tido como enfadonho por parte do público, é composto por idas e vindas através das épocas
Esta recomendação se dá porque a plateia estadunidense simplesmente o ignorou ao considerá-lo "chato", transformando uma produção de US$ 100 milhões em retumbante fracasso. Para que tenha ideia, a sua bilheteria total foi de meros US$ 26,9 milhões. No mercado internacional também não vai bem, tendo arrecadado, até agora, US$ 38,9 milhões. Ou seja, não vai se pagar. Em termos de crítica, a aceitação foi em termos de 50% positiva, 40% entre bom e razoável e cerca de 10% o consideraram ruim.
Caso embarque na viagem proposta pelo filme, você terá de passar por outra prova de superação: ter paciência com os flashbacks (idas ao passado) e flashforwards (idas ao futuro) estabelecidos logo nos primeiros minutos e que se multiplicam até o seu desfecho. Preste atenção que essa inicial alternância de tempos (ou épocas, para você se situar melhor) serve como apresentação dos personagens em seis linhas do tempo. E observe bem porque esses personagens são os mesmos em todas elas, apenas mudam de nome conforme cada período do tempo - ou épocas.
É dessa forma que "A Viagem" estabelece a sua história, indo e voltando no tempo. E repare bem a cena inicial na qual Tom Hanks aparece maquiado como um velho que vai contar a história. Se ele vai contar a história, obviamente, é porque ela já aconteceu, certo?
A partir daí, não terá mais problemas, porque os mesmos atores vivem os mesmos personagens em suas diversas épocas, embora maquiados. Repetindo, cada uma com o seu nome atual.
Por quê? Porque uma das temáticas é a da reencarnação. Sim, o filme trafega, assim como "A Fonte da Vida" e o recente "As Aventuras de Pi", pela religião e a filosofia e a afirmação da existência de Deus. Personagens e épocas se alternam para mostrar que tudo está conectado - as existências nos diversos tempos através da reencarnação e os diversos processos de vida, como as pessoais criações intelectuais, as escolhas (o livre arbítrio), as ações individuais e a relação com os outros e as suas consequências nas vidas futuras, tudo. Tudo está conectado.
Agora vem a conclusão: se tudo está conectado, o acaso não existe, algo divino foi o responsável pela criação da vida e suas conexões, não? Esta é a principal afirmação de "A Viagem". Aliás, o próprio título brasileiro busca significar a passagem pelos tempos. Mas, vale observar que essas questões remetem à doutrina espírita.
Observe que, no entanto, a questão não se fecha aí, já que o espiritismo rejeita a maior fraqueza humana: o suicídio. Por quê? Porque o sentido da existência reside na evolução temporal do espírito encarnado. A morte é uma passagem para uma outra existência e com todas as qualidades adquiridas até então. O suicídio gera sofrimento e atraso. No filme, um personagem encontra o suicídio como uma solução, mas, obviamente, ela não é.
Para facilitar o entendimento, observe que as épocas são datadas e em cada uma delas surgem fatos: uma viagem marítima, o encontro de um jovem antiescravagista com um negro em circunstâncias dramáticas, um diário pessoal, a carta de um compositor para um amigo, uma música clássica, e, lá para o final, na sociedade futurista, clones humanos. Todos esses elementos vão provocar ações e reações as quais vão se conectando a cada nova existência do espírito e tudo se conectará, como fechando um ciclo, lá no futuro.
"A Viagem" começa com Tom Hanks numa sociedade pós-apocalíptica, em 2346, e, através dele, o filme envereda pelas demais épocas - 1849, 1936, 1973, 2012 e 2144. Em cada uma delas os personagens vão mostrar recuos e avanços morais, tendo elementos sociais e políticos em segundo plano. Sim, o homem é um animal político, conforme afirmação de Aristóteles.
Peças
O enredo é assim mesmo, um quebra-cabeças, o qual vai sendo montando ao longo dos tempos. As primeiras histórias vão se conectando ao sabor da narrativa que vai alternando as épocas. Futuro, passado, presente, passado, futuro, passado, presente e futuro.
Os irmãos Wachowski, Andy e a irmã Lana, seguem a mesma diretriz traçada por "Matrix". Aliás, há cenas que se ligam diretamente à trilogia. Embora o crédito de direção seja do alemão Tom Tykwer, de "Perfume", os Wachowski dividiram com ele o comando de uma parte das filmagens. Roteiristas e diretor adaptam o romance "Cloud Atlas - Além das Nuvens", do britânico David Mitchell, considerado por este e críticos literários como "infilmável". Não está editado no Brasil.
Trafegando pela história
Apesar de trafegar por uma diretriz filosófica e espiritual, "A Viagem" molda os seus acontecimentos na História. A escravidão no século XIX, o perigo nuclear que permeou o século XX, a busca humana pela fama e a riqueza, os problemas econômicos e políticos dos tempos atuais e a possibilidade de estarmos fechados em governos ditatoriais, via tecnologia, no futuro, estão no enredo expondo a evolução do homem e de sua civilização - mas sem a garantia de que desfrutará, mesmo com um processo evolutivo de conhecimento, da plena liberdade.
"A Viagem" é, por isso, também um filme político. Mas, se quiser, pode ser visto como uma aventura, uma ficção científica. De qualquer forma, remete o homem à sua condição de ser espiritual cuja existência destina-se à superação das adversidades, a construir uma civilização, renovar-se espiritualmente a cada reencarnação, sempre visando o estabelecimento de uma evolução moral. Nada impede, no entanto, que ele mesmo venha a destruir toda essa construção e retornar à condição tribal para, daí, novamente, reerguê-la. Cada decisão humana tem as suas consequências.
Recomeçar, aliás, é outra temática do filme, no sentido de, em cada época, uma nova existência. O que permeia esse desenvolvimento é o amor, estabelecido como a grande virtude humana. É através do amor que "A Viagem" celebra o conceito de imortalidade do homem. A maneira mais pura para fazer entender a verdadeira natureza do ser espiritual que é o homem. Os Wachowski e Tom Tykwer criaram um filme que nos leva além das nuvens e promove reflexões existenciais e filosóficas. Nada menos do que um filme transcendente. Compre o bilhete e embarque na viagem.
Mais informações:
A Viagem (Cloud Atlas, EUA, 2012), de Tom Tykwer, com Tom Hanks, Halle Barry, Jim Broadbent, Hugo Weaving, Jim Sturges e Doona Bae. Imagem Filmes. 172 minutos. 16 anos. Salas e horários no caderno Zoeira.
PEDRO MARTINS FREIRE
CRÍTICO DE CINEMA
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