Pintor do século 19 já abordava questão ambiental em quadro
Enviado por luisnassif, qua, 16/01/2013 - 14:37
Por alfeu
Da Revista de História da Biblioteca Nacional
Natureza em quadro
A luta ambiental de Félix-Émile Taunay se deu por meio de suas pinturas
Claudia Valladão de Mattos
Convivendo com notícias alarmantes sobre a iminente destruição do planeta, mulheres e homens do século XXI lidam diariamente com a questão ambiental. Mas uma série de pesquisas realizadas nos últimos anos tem demonstrado que o tema está na ordem do dia há muito mais tempo, pelo menos desde o século XVII. Nessa época, a ciência já se via às voltas com a “teoria do dessecamento”, segundo a qual a destruição da vegetação nativa estava intimamente ligada às mudanças climáticas no planeta, que causavam a redução da umidade, das chuvas e dos mananciais de água.
No Brasil, o debate em torno da questão também começou bem antes do que se imaginava. Em seu livro pioneiro, Um Sopro de Destruição, o historiador carioca José Augusto Pádua revelou que, já no início do século XIX, a destruição das florestas brasileiras estava na agenda de políticos, intelectuais e artistas de grande relevo, como José Bonifácio, Joaquim Nabuco, Januário da Cunha Barboza, Gonçalves Dias e Manuel Araújo Porto Alegre.
O Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, possui em seu acervo uma tela que aborda a questão e há muito tempo chama a atenção de quem estuda a fundo a arte do século XIX. Trata-se de “Vista de um mato virgem que se está reduzindo a carvão”, pintada em 1843 pelo então diretor da Academia Imperial de Belas Artes, Félix-Émile Taunay (1795-1881). O quadro tem sido interpretado como uma alegoria do embate entre natureza e civilização, tema que reaparece em outras obras do período, como “Moema”, de Victor Meirelles (1832-1903), pintada duas décadas depois. A obra podia ser considerada um posicionamento do artista em relação a uma questão real que afetava a vida dos habitantes do Rio de Janeiro: a destruição das matas brasileiras. Era um indício de que seu engajamento político ia muito além das suas atividades na Academia. Alguns artistas estrangeiros, como o austríaco Thomas Ender (1793-1875) e o alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858), também registraram essa devastação durante suas passagens pelo Brasil nas décadas de 1810 e 1820, podendo ser considerados predecessores importantes de Taunay.
O debate sobre a preservação das matas nativas do Brasil foi inaugurado no país por José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), que denunciou, nos anos 1820, que elas vinham sendo destruídas, e culpou o sistema escravocrata. A partir da década de 1840, a questão entrou na pauta de instituições como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (Sain). O motivo era a ocupação dos morros nas cercanias da capital do Império com o cultivo do café, que estava destruindo a vegetação local.
Félix-Émile era filho do pintor Nicolas-Antoine Taunay, que havia chegado ao Brasil em 1816, como integrante da Missão Artística Francesa, para fundar uma academia de artes. Mas como era difícil sobreviver no Rio de Janeiro apenas com a venda de quadros, Nicolas Taunay comprou terras no Morro da Tijuca, onde fixou residência e fez seu cafezal. Assim que voltou para a França, em 1821, essas terras passaram para os filhos, e foram administradas, a princípio, pelo primogênito, Carlos Taunay. Como cafeicultor, ele logo se envolveu nos debates da Sociedade Auxiliadora e do IHGB, e em 1837 escreveu o Manual do Agricultor Brasileiro.
No livro, Carlos denunciava a destruição das matas próximas à capital, e recomendava aos agricultores que não abusassem “deste manancial de riqueza quase inesgotável que a natureza nos outorgou, não só pela razão da economia a favor dos nossos vindouros, como mesmo para a boa conservação da terra e temperamento da nossa atmosfera”. Em sua opinião, a devastação das florestas estava afetando o clima na capital: “A grande extensão que a cultura tomou nas vizinhanças da cidade e o indiscreto corte de matas que causou originaram, sem dúvida, esta alteração. O calor está notavelmente mais intenso, as trovoadas, outrora diárias, são raríssimas, e finalmente, de tantas fontes próximas à cidade, umas já secaram de todo e outras correm mais escassas”.
É impossível crer que Félix-Émile, também membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, não acompanhasse as atividades da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional – criada em 1827 – e que fosse indiferente a essas questões. Por esse motivo, o quadro “Vista de um mato virgem que se está reduzindo a carvão” pode ser entendido como um verdadeiro manifesto em defesa das florestas cariocas, e se divide em duas partes. À direita, vê-se uma floresta densa, majestosa e centenária, por onde corre um rio de águas claras que desemboca em um poço natural. Esse exemplo de mata atlântica é contraposto, à esquerda, a uma paisagem desoladora, onde homens negros trabalham sem cessar, derrubando a mata a machadadas e empilhando os enormes troncos para fazer uma fogueira.
Considerando essa pintura e os trabalhos de José Bonifácio e de Carlos Taunay em seu Manual, a relação entre escravidão e desmatamento é um tema recorrente na crítica que se faz à preservação do meio ambiente. Na obra de Félix-Émile, a brutalidade do movimento dos machados e a indiferença dos negros quanto ao destino da floresta tornam-se ainda mais evidentes por conta da presença, no quadro, de um único homem branco, que parece estar medindo forças com a imponente obra da natureza. O horizonte onde estão as árvores derrubadas, na metade esquerda do quadro, deixa à mostra uma região montanhosa que faz lembrar as serras que cercam a cidade do Rio de Janeiro.
É evidente que o cenário descortinado pela obra fica em um lugar elevado, acima do vale que se delineia ao fundo, local que, de acordo com o texto de Carlos Taunay, deveria permanecer intocado. O centro do quadro se configura como a fronteira entre a floresta e os campos devastados pelo fogo e pelos machados dos escravos negros. É nesse espaço que se acumulam alguns dos elementos cruciais da narrativa proposta pelo artista. Salta aos olhos, em primeiro lugar, a grande figueira, cuja frondosa copa ocupa quase toda a parte superior direita do quadro. É como se ela fosse o “personagem principal” do drama. Ao seu lado, como se a estivesse amparando, aparece um pau-mulato, uma árvore cuja madeira era muito usada na fabricação de móveis. A posição estratégica que as duas árvores ocupam na imagem lhes dá um aspecto de resistência heroica. Um pouco mais à esquerda, já ocupando a área parcialmente desmatada, um riacho corre com dificuldade entre pedras e entulhos, exposto ao sol e ao vento, contrapondo-se ao leito oculto pela mata densa do rio à direita.
Entre a enorme figueira e o rio agonizante à esquerda, descortina-se uma estrada lamacenta por onde caminha um negro ao lado de um jumento com as costas arqueadas devido ao peso de sua carga. A cena sugere uma narrativa dramática: escravos negros derrubam as matas nativas nos arredores do Rio de Janeiro, provavelmente com o objetivo de abrir espaço para um lucrativo cafezal. Mas tão logo a mata é abatida, já é possível intuir consequências nefastas: a esterilidade do terreno, representada pelo aspecto espinhoso que ele adquire com a presença dos restos de troncos abatidos, a diminuição das águas expostas a céu aberto e a lama que corre pela estrada, como se fosse um rio traiçoeiro.
Visto sob esse novo ângulo, o quadro de Taunay parece adquirir um sentido menos abstrato e mais engajado politicamente. Também fica claro o significado da inscrição que acompanhou o quadro em sua primeira apresentação na Exposição Geral de 1843, provavelmente composto pelo próprio artista: “A desaparição dos mais belos exemplares do reino vegetal nos arredores da cidade ameaça a esta, segundo cálculos irrefutáveis, com diminuição das águas vivas e elevação do grau médio de calor, dois males reciprocamente ativos”.
A tela de Félix-Émile Taunay se apresenta como um testemunho do envolvimento direto do artista em uma das primeiras lutas por uma política ambiental no Brasil, que, surpreendentemente, se deu por vitoriosa no século XIX. Em 1862, D. Pedro II, patrono e membro ativo do IHGB, e benfeitor da Academia, aprovou um plano de reflorestamento da Tijuca, sob a direção do major Manuel Gomes Archer, que durou mais de uma década e foi um dos primeiros a ser realizado em todo o planeta.
Claudia Valladão de Mattos é professora da Universidade Estadual de Campinas e autora do livro Goethe e Hackert: sobre a pintura de paisagem (Ateliê, 2008).
Saiba Mais - Bibliografia
DIAS, Elaine. Paisagem e Academia: Félix-Émile Taunay e o Brasil (1824-1851). Campinas: Editora da Unicamp, 2009.
PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição. Pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
"Vista de um Mato Virgem que está se Reduzindo a Carvão"(1843) - Félix-Émile Taunay
Enviado por luisnassif, qua, 16/01/2013 - 14:37
Por alfeu
Da Revista de História da Biblioteca Nacional
Natureza em quadro
A luta ambiental de Félix-Émile Taunay se deu por meio de suas pinturas
Claudia Valladão de Mattos
Convivendo com notícias alarmantes sobre a iminente destruição do planeta, mulheres e homens do século XXI lidam diariamente com a questão ambiental. Mas uma série de pesquisas realizadas nos últimos anos tem demonstrado que o tema está na ordem do dia há muito mais tempo, pelo menos desde o século XVII. Nessa época, a ciência já se via às voltas com a “teoria do dessecamento”, segundo a qual a destruição da vegetação nativa estava intimamente ligada às mudanças climáticas no planeta, que causavam a redução da umidade, das chuvas e dos mananciais de água.
No Brasil, o debate em torno da questão também começou bem antes do que se imaginava. Em seu livro pioneiro, Um Sopro de Destruição, o historiador carioca José Augusto Pádua revelou que, já no início do século XIX, a destruição das florestas brasileiras estava na agenda de políticos, intelectuais e artistas de grande relevo, como José Bonifácio, Joaquim Nabuco, Januário da Cunha Barboza, Gonçalves Dias e Manuel Araújo Porto Alegre.
O Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, possui em seu acervo uma tela que aborda a questão e há muito tempo chama a atenção de quem estuda a fundo a arte do século XIX. Trata-se de “Vista de um mato virgem que se está reduzindo a carvão”, pintada em 1843 pelo então diretor da Academia Imperial de Belas Artes, Félix-Émile Taunay (1795-1881). O quadro tem sido interpretado como uma alegoria do embate entre natureza e civilização, tema que reaparece em outras obras do período, como “Moema”, de Victor Meirelles (1832-1903), pintada duas décadas depois. A obra podia ser considerada um posicionamento do artista em relação a uma questão real que afetava a vida dos habitantes do Rio de Janeiro: a destruição das matas brasileiras. Era um indício de que seu engajamento político ia muito além das suas atividades na Academia. Alguns artistas estrangeiros, como o austríaco Thomas Ender (1793-1875) e o alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858), também registraram essa devastação durante suas passagens pelo Brasil nas décadas de 1810 e 1820, podendo ser considerados predecessores importantes de Taunay.
O debate sobre a preservação das matas nativas do Brasil foi inaugurado no país por José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), que denunciou, nos anos 1820, que elas vinham sendo destruídas, e culpou o sistema escravocrata. A partir da década de 1840, a questão entrou na pauta de instituições como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (Sain). O motivo era a ocupação dos morros nas cercanias da capital do Império com o cultivo do café, que estava destruindo a vegetação local.
Félix-Émile era filho do pintor Nicolas-Antoine Taunay, que havia chegado ao Brasil em 1816, como integrante da Missão Artística Francesa, para fundar uma academia de artes. Mas como era difícil sobreviver no Rio de Janeiro apenas com a venda de quadros, Nicolas Taunay comprou terras no Morro da Tijuca, onde fixou residência e fez seu cafezal. Assim que voltou para a França, em 1821, essas terras passaram para os filhos, e foram administradas, a princípio, pelo primogênito, Carlos Taunay. Como cafeicultor, ele logo se envolveu nos debates da Sociedade Auxiliadora e do IHGB, e em 1837 escreveu o Manual do Agricultor Brasileiro.
No livro, Carlos denunciava a destruição das matas próximas à capital, e recomendava aos agricultores que não abusassem “deste manancial de riqueza quase inesgotável que a natureza nos outorgou, não só pela razão da economia a favor dos nossos vindouros, como mesmo para a boa conservação da terra e temperamento da nossa atmosfera”. Em sua opinião, a devastação das florestas estava afetando o clima na capital: “A grande extensão que a cultura tomou nas vizinhanças da cidade e o indiscreto corte de matas que causou originaram, sem dúvida, esta alteração. O calor está notavelmente mais intenso, as trovoadas, outrora diárias, são raríssimas, e finalmente, de tantas fontes próximas à cidade, umas já secaram de todo e outras correm mais escassas”.
É impossível crer que Félix-Émile, também membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, não acompanhasse as atividades da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional – criada em 1827 – e que fosse indiferente a essas questões. Por esse motivo, o quadro “Vista de um mato virgem que se está reduzindo a carvão” pode ser entendido como um verdadeiro manifesto em defesa das florestas cariocas, e se divide em duas partes. À direita, vê-se uma floresta densa, majestosa e centenária, por onde corre um rio de águas claras que desemboca em um poço natural. Esse exemplo de mata atlântica é contraposto, à esquerda, a uma paisagem desoladora, onde homens negros trabalham sem cessar, derrubando a mata a machadadas e empilhando os enormes troncos para fazer uma fogueira.
Considerando essa pintura e os trabalhos de José Bonifácio e de Carlos Taunay em seu Manual, a relação entre escravidão e desmatamento é um tema recorrente na crítica que se faz à preservação do meio ambiente. Na obra de Félix-Émile, a brutalidade do movimento dos machados e a indiferença dos negros quanto ao destino da floresta tornam-se ainda mais evidentes por conta da presença, no quadro, de um único homem branco, que parece estar medindo forças com a imponente obra da natureza. O horizonte onde estão as árvores derrubadas, na metade esquerda do quadro, deixa à mostra uma região montanhosa que faz lembrar as serras que cercam a cidade do Rio de Janeiro.
É evidente que o cenário descortinado pela obra fica em um lugar elevado, acima do vale que se delineia ao fundo, local que, de acordo com o texto de Carlos Taunay, deveria permanecer intocado. O centro do quadro se configura como a fronteira entre a floresta e os campos devastados pelo fogo e pelos machados dos escravos negros. É nesse espaço que se acumulam alguns dos elementos cruciais da narrativa proposta pelo artista. Salta aos olhos, em primeiro lugar, a grande figueira, cuja frondosa copa ocupa quase toda a parte superior direita do quadro. É como se ela fosse o “personagem principal” do drama. Ao seu lado, como se a estivesse amparando, aparece um pau-mulato, uma árvore cuja madeira era muito usada na fabricação de móveis. A posição estratégica que as duas árvores ocupam na imagem lhes dá um aspecto de resistência heroica. Um pouco mais à esquerda, já ocupando a área parcialmente desmatada, um riacho corre com dificuldade entre pedras e entulhos, exposto ao sol e ao vento, contrapondo-se ao leito oculto pela mata densa do rio à direita.
Entre a enorme figueira e o rio agonizante à esquerda, descortina-se uma estrada lamacenta por onde caminha um negro ao lado de um jumento com as costas arqueadas devido ao peso de sua carga. A cena sugere uma narrativa dramática: escravos negros derrubam as matas nativas nos arredores do Rio de Janeiro, provavelmente com o objetivo de abrir espaço para um lucrativo cafezal. Mas tão logo a mata é abatida, já é possível intuir consequências nefastas: a esterilidade do terreno, representada pelo aspecto espinhoso que ele adquire com a presença dos restos de troncos abatidos, a diminuição das águas expostas a céu aberto e a lama que corre pela estrada, como se fosse um rio traiçoeiro.
Visto sob esse novo ângulo, o quadro de Taunay parece adquirir um sentido menos abstrato e mais engajado politicamente. Também fica claro o significado da inscrição que acompanhou o quadro em sua primeira apresentação na Exposição Geral de 1843, provavelmente composto pelo próprio artista: “A desaparição dos mais belos exemplares do reino vegetal nos arredores da cidade ameaça a esta, segundo cálculos irrefutáveis, com diminuição das águas vivas e elevação do grau médio de calor, dois males reciprocamente ativos”.
A tela de Félix-Émile Taunay se apresenta como um testemunho do envolvimento direto do artista em uma das primeiras lutas por uma política ambiental no Brasil, que, surpreendentemente, se deu por vitoriosa no século XIX. Em 1862, D. Pedro II, patrono e membro ativo do IHGB, e benfeitor da Academia, aprovou um plano de reflorestamento da Tijuca, sob a direção do major Manuel Gomes Archer, que durou mais de uma década e foi um dos primeiros a ser realizado em todo o planeta.
Claudia Valladão de Mattos é professora da Universidade Estadual de Campinas e autora do livro Goethe e Hackert: sobre a pintura de paisagem (Ateliê, 2008).
Saiba Mais - Bibliografia
DIAS, Elaine. Paisagem e Academia: Félix-Émile Taunay e o Brasil (1824-1851). Campinas: Editora da Unicamp, 2009.
PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição. Pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
"Vista de um Mato Virgem que está se Reduzindo a Carvão"(1843) - Félix-Émile Taunay
Nenhum comentário:
Postar um comentário