quarta-feira, 3 de abril de 2013


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O baiano cineasta da Comissão Rondon
 Enviado por luisnassif, qua, 03/04/2013 - 14:31



Por Josias Pires

Do Caderno de Cinema

O BAIANO CINEASTA DA COMISSÃO RONDON          

por Josias Pires

O livro A imagética da Comissão Rondon, do fotógrafo e antropólogo Fernando de Tacca, Papirus Editora [2001], realiza a etnografia fílmica  de um cinema antropológico pioneiro no mundo, realizado nas primeiras décadas do século XX pelo baiano de Alagoinhas, o engenheiro-militar Luiz Thomaz Reis, encarregado pelo então coronel Cândido Rondon para as atividades de registros fotográficos e cinematográficos das atividades da Comissão. A etnografia visual é utilizada por Rondon para diversas finalidades, inclusive ajudar a divulgar as suas atividades e convencer os apoiadores da importância e necessidade da manutenção dos trabalhos.



Major Thomaz Reis e Índios Bororo

Como é sabido, Rondon lidera, a partir da última década do século XIX, uma aventura de descoberta do Brasil, proporcionando novos conhecimentos sobre as regiões Centro-Oeste e Norte do país. Ao final das suas atividades,  cerca de 30 anos depois, a Comissão havia implantado 4.500 km de rede telegráfica. Em torno desse trabalho agrupam-se todas as demais atividades: levantamento geográfico e topográfico, da fauna, flora, mineralogia, geologia, climatologia, etnografia, pacificação dos índios, observações de seus costumes, línguas, etc.

O então coronel Rondon cria, de modo absolutamente inovador,  em 1912, a Secção de Cinematographia e Photographia da Comissão, sob a responsabilidade do então tenente Luiz Thomaz Reis. Como inexistia tecnologia apropriada no Brasil, Reis viaja imediatamente para a Europa para comprar equipamentos e começa seus primeiros registros em 1914. As filmagens eram feitas com duas câmaras, uma Williamson de 30 metros e uma Debrie Studio de 120 metros, que Reis utilizava para ‘’os estudos mais importantes”. O resultado dos trabalhos demonstra que o baiano cineasta militar tinha conhecimentos técnicos avançados no trato com a imagem.



Amílcar Botelho de Magalhães, chefe do escritório central da Comissão afirma que esta dispunha de todos os equipamentos necessários para a realização dos filmes, inclusive “a impressão dos positivos e dos letreiros, a secagem artificial, o enrolamento mecânico das bobinas, etc. tudo movido à eletricidade. O próprio Capitão Reis dirigiu toda a instalação, com a mais notável proficiência, e tudo funcionava às mil maravilhas até eu deixar o Escritório Central em maio de 1922”.

Reis desenvolveu um sistema artesanal de revelação de filmes em áreas úmidas. Informa o autor que nas penosas expedições pelo interior da selva, abrindo picadas e fazendo levantamentos geográficos, muitas imagens fotográficas e cinematográficas foram perdidas em travessias de rios perigosos ou mesmo na revelação dos negativos, quando os insetos devoravam a película, principalmente de cinema, como escreve Thomaz Reis:

Depois de seis meses de serviço, sob minha observação pessoal, pois que era a primeira vez que fazia isso no sertão, tendo por felicidade estudado a ‘emulsão’’ e o tempo de sua eficiência em zonas quentes e húmidas, o que me levou a preparar aparelhos de madeiras especiais para revelar os filmes no local, foi então obtido com vantagem o film conhecido por ‘’Sertões do Mato-grosso’’, exibido em 1915 no Rio de Janeiro e depois, em todo o Brasil.

 Thomaz Reis acompanhou boa parte das expedições, foi o principal fotógrafo e cineasta da equipe, aquele capaz de melhor realizar o projeto de construção da imagem do índio concebida por Rondon. Fernando Tacca encontrou na Cinemateca Brasileira sete filmes de Thomaz Reis: Rituais e festas bororo (1917, 20 min)’; Ao redor do Brasil. Aspectos do interior e das fronteiras brasileiras (1932, 71 min); Ronuro, selvas do Xingu (1924, 15 min); Os Carajás (1932, 10 min]; Viagem ao Roraimã (1927, 24min); Purimã, fronteiras do Brasil (1927, 24 min); e Inspetoria de fronteiras (1938, 80 min]. A descrição e analise desses  filmes estruturam os cinco capítulos do livro.

Trecho do filme “Ao Redor do Brasil – Aspectos do interior e das fronteiras brasileiras”, dirigido pelo Major Luiz Thomaz Reis em 1932, um dos primeiros documentários etnográficos do Brasil. Longa-metragem em preto e branco e sem áudio.

Diz o autor que a aproximação com os filmes permite perceber a metodologia de captação das imagens em campo e uma proposta de montagem cinematográfica.  O filme Rituais e festas bororo é considerado um dos primeiros filmes etnográficos do mundo e contem características de metodologias de campo desenvolvidas posteriormente pela antropologia.

Além dos filmes, as principais fontes de Fernando Tacca são publicações da Comissão, sobretudo os três volumes do livro Índios do Brasil. O primeiro volume contém imagens dos índios do Mato Grosso; o segundo volume abrange a região dos rios Araguaia e Oiapoque,  a cabeceira do rio Xingu com seus vales, inclusive o rio formador, o Ronuro. O terceiro volume estende-se sobre o vale do rio Trombetas, e também os rios Jari, Negro e Branco, na Amazônia.

O primeiro capítulo do livro de Fernando Tacca “A imagem do índio como ‘selvagem’” faz a decupagem detalhada das tomadas feitas por Reis e das sequências cinematográficas por ele mesmo montadas do filmeRituais e festas bororo, no qual estão registrados aspectos do cotidiano e da cultura material dos índios (pesca, cerâmica, tecelagem] e numa segunda parte, as filmagens de rituais funerários.

O autor observa que, apesar da influência que os Bororo recebiam àquela altura de missionários, o filme faz um recorte para mostrar imagens e atividades que remetem diretamente à ideia do  “índio dos tempos do descobrimento”.  O período de realização deste filme foi precedido por uma expedição científica do estadista e naturalista norte-americano Theodor Roosevelt pelas selvas do Mato Grosso, ao lado de Rondon, entre dezembro de 1913 e maio de 1914. A expedição foi acompanhada por Reis que realiza, em 1914, o filmeExpedição Roosevelt, exibido naquele ano durante conferência de Rondon no Teatro Phenix, no Rio.

Na análise do filme Rituais e festas bororo, Tacca observa a destreza operacional de Thomaz Reis na captação das imagens em campo. Na decupagem das cenas do filme nota-se que o encadeamento das sequências, em alguns momentos, pressupõe a ideia de montagem. “Em várias passagens, a montagem aparece quase como em edição de gatilho, tal a velocidade de mudança de ângulo da câmara em seu próprio eixo. Isto é, no tripé, para dar continuidade ao registro dos movimentos das danças sem uma “perda” de continuidade”. Ou seja, o cineasta-fotógrafo Thomaz Reis montava, como costuma fazer os cineastas, na cabeça as sequências do que estava filmando.



Rituais e Festas Bororos



Reis anota também as limitações várias ao exercício pleno da atividade de registro dos rituais funerários, a principal delas sendo a impossibilidade de filmar em interiores e sem a luz do dia. “O fato de todas as tomadas terem sido feitas ao ar livre, com luz natural, excluindo-se as importantes cenas que ocorrem dentro das casas, foi uma frustração para Reis, assim como a impossibilidade de filmar rituais funerários feitos antes “da luz do dia”. Sem a câmera, Reis vale-se da escrita de observações etonográficas, como se lê neste trecho:

“Quando morreu essa mulher, todos os parentes vieram junto à defunta, que estava inteiramente untada de Nonôgo [urucum], e sobre ela deixaram correr o sangue que jorrava de centenas de talhos e arranhões feitos sobre si mesmas com umas conchas afiadas … Enquanto essas mulheres se maltratavam deste modo, a defunta jazia sob um banho de sangue que lhe era oferecido, como última relíquia, por suas amigas: ao redor o Bacôroro especial do funeral, sustentado por todos os Boemejêras, estes untados de encarnado e agitando os Bápus, compassadamente, trovejava – pode-se dizer, comparando bem, pelo ruído de seus passos pesados e ritmo gutural de seu canto e a zoada  dos chocalhos nessa hora sacudidos com toda a impetuosidade. O pó asfixiava, as mulheres brandavam as boas qualidades da defunta, outras se cortavam em prantos; sangue e lágrimas misturavam-se; o solo estremecia sob os pés dos chefes Bororo com o “Parico”, que dava àqueles vultos vermelhos e suarentos, de rostos contraídos pela febre dessas doenças, a impressão infernal e assustadora de oriundos de uma visão apocalíptica”.



 Tacca nota que o engenheiro militar-cineasta tinha consciência da  “ideia de exótico e de força emocional que tais cenas poderiam causar nos espectadores. Devemos acrescentar que o primeiro cinema é flagrantemente marcado por “atrações” diversas nas telas dos cinemas. Escreve o nosso personagem:

Há entre eles [Bororo] práticas inocentes e outras verdadeiramente horríveis; ora, em cinematografia, uma arte que, como todas as outras, passa por tantas modalidades, quanto mais de perto tem que acompanhar as inclinações e gosto do público, o que é horrível é  que agrada; tanto mais barbara é uma cena tanto melhor para tonificar os nervos gastos das nossas plateias, ávidas do sensacional”.

Em 1918 o jovem capitão e cineasta Luiz Thomaz Reis viaja para os EUA, patrocinado pela National Geografic Society, para exibir no Carnegie Hall, de Nova Iorque, a película Wilderness (chamada no Brasil de Santa Cruz], por ocasião de uma palestra proferida por Theodore Roosevelt.

“A imagem do índio como pacificado” é o título do capítulo dois que tem como objeto fílmico de estudoRonuro, selvas do Xingu. Diferentemente do filme sobre os rituais Bororo, este faz o registro da expedição às nascentes do rio Xingu, sendo o índio grupos de indivíduos a serem pacificados, medidos e vestidos. No primeiro filme analisado, o índio existe em si mesmo; no segundo, existe e se transforma, assumindo nova existência visual em decorrência da visita da expedição.  A imagem do índio como ïntegrado” vai aparecer no filme Os Carajás (1932); a imagem do índio como “civilizado” no  Inspetoria de Fronteiras – Alto do Rio Negro(1938

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