O entreguismo revestido de modernidade

Por Oswaldo Conti-Bosso
Do blog Cidadania & Cultura
Ideologia do Gabinete-Sombra Neoliberal: Casa das Garça
Por Fernando Nogueira da Costa
Um seguidor deste blog solicitou-me fazer o debate ideológico com o “Gabinete-Sombra Neoliberal”, conhecida como “a Casa das Garças” ou “o Ninho de Tucanos”. Acontece que estou com a agenda muito cheia e sem tempo a perder. Mas vamos reproduzir a entrevista realizada por Cyro Andrade (Valor, 12/03/13) com Monica Baumgarten de Bolle, organizadora, conjuntamente com Edmar Bacha, do livro do Instituto de Estudos de Política Econômica – Casa das Garças, a partir de seminários realizados em abril e junho de 2012, para “discutir o próprio sentido da desindustrialização” e, curiosamente no caso da oposição, “esboçar uma contribuição para o que possa constituir uma nova política industrial.” Os ensaios reunidos em “O Futuro da Indústria no Brasil” espelham o que foi aquele debate, uma busca de entendimento de problemas da indústria brasileira, uns mais antigos, outros mais atuais.
De todos os ângulos que se olhe, a questão industrial é parte essencial da questão maior de competitividade da economia brasileira. Sempre foi assim, mas ganhou importância adicional, recentemente, compreender essa relação na maior extensão possível — e em termos globais —, na medida em que confluíam sinais do que se passou a chamar de “desindustrialização” e movimentos de resposta do governo a esse processo, com medidas típicas de política industrial.
A moça da Casa das Garças é uma graça! Pena ser neoliberal… “A politização do tema (a desindustrialização) prejudica uma análise mais rigorosa acerca do que se passa. O governo tem uma visão ideológica sobre o papel da indústria no país — há um “fetiche industrial”, uma ideia arraigada de que somente a indústria é capaz de proporcionar as bases para o aumento do emprego, da produtividade e do crescimento”, disse ela na entrevista. “Essa postura é respaldada pelos interesses localizados dos próprios empresários de determinados setores. Isso favorece a ausência de uma análise mais isenta, menos normativa e mais positiva, científica, sobre esses assuntos. A consequência é a profusão de medidas sem estratégia clara.”
Contraditória, não? De início, “denuncia” que o governo “defende” os interesses da indústria para alcançar maior competitividade internacional. Reconhecidamente, para os especialistas, ela gera melhores empregos e maiores salários do que a maioria dos serviços. Depois, afirma que há “a profusão de medidas sem estratégia clara”. Em outras palavras, tudo que não seja “a análise mais isenta, menos normativa e mais positiva, científica”, da Casa das Garças, sobre esses assuntos, não teria “estratégia clara”!
É claro que a estratégia neoliberal é ampliar a abertura comercial, mesmo nessa conjuntura de crise em que o resto do mundo adota protecionismo, e deixar todo o restante por conta das livres forças de O Mercado, que se encarregará da “destruição criativa”. É de chorar de rir o velho entreguismo revestido de modernidade…
A seguir, a entrevista, pois necessitamos conhecer e analisar os argumentos dos adversários ideológicos, para melhor combatê-los.

Valor: “Foi com a preocupação de entender melhor o que quer dizer a desindustrialização” (lê-se na introdução do livro) que se decidiu organizar os seminários na Casa das Garças, em abril e junho de 2012. Em que momento essa “preocupação” tomou corpo, influenciada por quais razões?
Monica Baumgarten de Bolle: O tema da indústria, a preocupação com sua perda de participação no PIB brasileiro, está conosco, pelo menos, desde 2011. Foi ao longo daquele ano, depois do “Pibão” de 2010, o ano do crescimento inédito de 7,5%, que a indústria brasileira começou a perder fôlego. Embora 2011 tenha sido um ano bastante difícil para a indústria global por diversas razões – o agravamento da crise política americana, a disseminação dos problemas econômicos, financeiros e políticos na Europa, a redução do ritmo de crescimento da China – havia claras evidências de que o desempenho da indústria brasileira fora ainda pior do que o ocorrido em outros países. Surgiu, portanto, a pergunta: Por quê? De que fatores provinha o mau desempenho dos setores de manufaturados no Brasil? Seria apenas a valorização “excessiva” do câmbio, como diagnosticara, na ocasião, o governo? Ou o problema da perda de competitividade dos produtos brasileiros que se evidenciava era mais complexo do que isso? Essas questões ganharam relevância ao longo da segunda metade de 2011 e do primeiro semestre de 2012, culminando nos seminários que decidimos organizar na Casa das Garças.
Valor: Quais indagações principais então se colocaram como possíveis elementos de exploração temática nos seminários? Em que grau as escolhas temáticas feitas terão sido influenciadas pelo quadro de conjuntura vivenciada na época pela economia brasileira?
Monica: Havia três frentes que queríamos explorar:
1. Como definir a “desindustrialização”, termo que não tinha um significado homogêneo, que abarcava variadas interpretações para diferentes interlocutores. Alguns achavam que equivalia à perda de participação da indústria no PIB; outros a identificavam com o deslocamento de fatores de produção do setor industrial para os setores de serviços, bem como para o polo agro-mínero-industrial.
2. Qual o diagnóstico do problema, isto é, por que a indústria brasileira estaria definhando?
3. O encolhimento da indústria seria prejudicial ao país no médio prazo? Ou, dito de outra forma, teria a indústria algo de “especial” que outros setores não tinham, ou seria a ideia de que o Brasil geraria menos empregos e menos crescimento com um setor industrial mais restrito fundamentalmente equivocada? Nessa linha, o juízo preconceituoso em relação aos setores de commodities, à “reprimarização” da produção brasileira, era falacioso?
Esses questionamentos tinham relação direta com o que se observava no quadro conjuntural, bem como com as declarações do governo brasileiro sobre o problema.
Valor: Um ano depois, tendo o novo governo federal supostamente ganhado condições de posicionar-se frente aos principais problemas da economia, que avaliação pode ser feita de decisões tomadas em áreas críticas para a elevação da competitividade da indústria brasileira? Essas decisões refletem compreensão suficiente da natureza dos problemas a enfrentar?
Monica: De um lado, houve um reconhecimento gradual do governo brasileiro de que os problemas de competitividade da indústria iam muito além do câmbio. Isso foi bastante positivo, pois reposicionou o foco da competitividade nas questões estruturais, que de fato estrangulam a produção no país: a carga tributária onerosa, a infraestrutura desmazelada, o hiato entre salários e produtividade, que pressiona os custos das empresas.
Contudo, falta ainda ao governo uma visão estratégica sobre como enfrentar esses problemas, modernizando a indústria. Considere, por exemplo, o que fazem países latino-americanos como o México: percebendo que a indústria moderna é global, que os produtos manufaturados em determinado país são nada mais do que elos nas cadeias produtivas mundiais – pense na fabricação de um iPad, que está distribuída mundo afora – as autoridades mexicanas têm buscado acordos comerciais, numa tentativa de engajar a indústria nessas redes globais. Voltam-se para fora. Nós caminhamos na direção contrária. Em vez de nos abrirmos para o resto do mundo, nos fechamos por intermédio de políticas protecionistas que excluem a indústria brasileira dessas cadeias globais de produção. Desse modo, ainda que resolvêssemos os problemas identificados pelo governo, desonerando a indústria, investindo em infraestrutura e qualificando a mão de obra, não teríamos uma indústria condizente com a realidade atual.
Valor: No mesmo período, a questão cambial manteve-se, e mantém-se em aberto, no sentido de que não se tem uma visão clara do que seja, do ponto de vista governamental, o melhor uso a fazer do câmbio na condução mais geral da política macroeconômica, seja isoladamente, seja em conjunto com medidas administrativas, como tributação, por exemplo, sobre o comércio exterior. Em que medida essa falta de explicitação constituiria um problema adicional entre aqueles que influem sobre a competitividade das empresas brasileiras?
Monica: A falta de rumo macroeconômico, a ausência de clareza sobre o que é a política cambial e sobre como o governo resolverá o dilema do crescimento baixo com inflação alta que nos aflige, isso cria incertezas adicionais para a indústria. O governo se refere constantemente ao “espírito animal”, essa entidade que deveria impulsionar o ânimo dos empresários, galvanizando o investimento. Mas como fazer isso se o próprio governo envia sinais conflitantes sobre o câmbio, sobre os juros? Ora quer uma taxa mais desvalorizada, ora prefere que se valorize um pouco para conter as pressões sobre os preços. Ora insiste que os juros não aumentarão, ora diz que não tolerará uma alta inflacionária, o que implica, necessariamente, uma mudança de rumo na política monetária. O empresário, ressabiado, fica acuado. Como o investimento não vem, o governo, então, concede benesses de todos os tipos – crédito público farto e barato, desonerações em série, subsídios ao investimento – prejudicando as contas públicas e abalando a estabilidade macroeconômica do país. A inflação sobe e se retorna ao ponto de partida inicial, em que as declarações e as ações sobre o câmbio e os juros ficam nebulosas. O governo anda em círculos porque não tem estratégia.
O mesmo de dá com o comércio exterior. Veja a questão das tarifas de importação. Há poucos meses, o governo anunciou uma lista de 100 produtos que ficariam sujeitos a tarifas de importação mais elevadas. Agora, diante de um quadro inflacionário assustador, reverte a medida. É muito ruído.
Valor: Lê-se também na introdução que “surpreende, em meio a tanta controvérsia, quão pouco o tema (a desindustrialização) é estudado com profundidade na literatura econômica brasileira recente”. Como se explica essa escassez de interesse? Até que ponto essa escassez de trabalhos dedicados ao tema – e, portanto, a insuficiência de sua discussão, seja na academia, seja publicamente – pode ter influído na qualidade de políticas produzidas para a economia em sentido amplo, ao longo dos anos e mais recentemente?
Monica: Não creio que seja escassez de interesse, mas, sim, a politização do tema que prejudica uma análise mais rigorosa acerca do que se passa. O governo tem uma visão ideológica sobre o papel da indústria no país – há um “fetiche industrial”, uma ideia arraigada de que somente a indústria é capaz de proporcionar as bases para o aumento do emprego, da produtividade e do crescimento. Essa postura é respaldada pelos interesses localizados dos próprios empresários de determinados setores. Isso favorece a ausência de uma análise mais isenta, menos normativa e mais positiva, científica, sobre esses assuntos. A consequência é a profusão de medidas sem estratégia clara que estamos testemunhando.
Lá fora, há muita gente estudando a relevância da indústria para o crescimento econômico, motivada pela experiência de países como a Austrália, onde a baixa representatividade da indústria no PIB não impede que o país cresça e gere ganhos de produtividade e de emprego. De fato, há vários estudos acadêmicos que mostram quenão há uma relação clara entre indústria “forte” e crescimento econômico. Aqui, essas reflexões são ignoradas devido à carga política da discussão. Mitos se criam em torno da“reprimarização” das exportações e do suposto retrocesso brasileiro. No livro que organizamos há um capítulo excelente, de autoria de Sergio Lazzarini, Marcos Jank e Carlos Inoue, que aborda esse tema e mostra como a ideia da “maldição das matérias primas” é equivocada.
Valor: Nesse contexto de falta de melhor compreensão do problema, as empresas multinacionais, líderes naturais no cenário econômico global, foram tomando decisões e influindo sobre políticas de governo. Estaria aí um elemento adicional de dificuldade para se avançar em direção a objetivos que de fato interessem ao desenvolvimento do país?
Monica: Não creio que as empresas multinacionais tenham qualquer relação com as dificuldades de se estabelecer um plano estratégico de desenvolvimento. A razão para que não o tenhamos está no excesso de ideologismo do atual governo.
Valor: Mesmo com os desdobramentos da crise de 2008, o setor industrial continua a crescer, mas de um modo bifurcado, lê-se em relatório do McKinsey Global Institute. O valor adicionado global da indústria cresceu de US$ 5,7 trilhões anuais em 2000 para US$ 7,5 trilhões em 2010, mas a demanda em países em desenvolvimento está crescendo a uma taxa que corresponde a 2,5 vezes a taxa observada em países desenvolvidos. Isso vem acontecendo há vários anos, mas sua velocidade e impacto não são claramente conhecidos. Nas contas do Instituto, em 2025, mais da metade da demanda global de consumo estará nos países hoje em desenvolvimento. Mais de 1,8 bilhão de pessoas, a maioria nos países em desenvolvimento, passarão a fazer parte da “classe de consumidores globais”. Esse crescimento da demanda será “criticamente importante” para as empresas industriais globais, conclui o relatório. Haverá tempo de empresas brasileiras se prepararem para participar do aproveitamento dessa expansão da demanda em seu próprio território? Sob quais termos de competitividade e, eventualmente, de cooperação, inclusive e particularmente em termos tecnológicos?
Monica: Essa é a questão fundamental. Se não mudarmos de rumo, se não reconhecermos que o palco da indústria nacional é o mundo, e não somente o mercado interno, perderemos muitas oportunidades. Do jeito que estamos caminhando, daqui a pouco estaremos nos perguntando se há futuro para uma indústria que não se moderniza devido aos preconceitos existentes.
Tais preconceitos levam a uma resistência perigosa à ideia de buscar novas parcerias comerciais com outros países e a permitir que as transferências tecnológicas ocorram por meio da abertura comercial. As indústrias dos países asiáticos se modernizaram assim, abrindo espaço para que empresas estrangeiras com padrão tecnológico superior se instalassem e compartilhassem o seu conhecimento com as companhias locais. Isso não ocorrerá se mantivermos essas regras mais rigorosas de conteúdo local, instituídas pelo atual governo.
A questão do conteúdo local, aliás, tem sido bastante prejudicial para o avanço de projetos estratégicos, como mostra, no livro, o capítulo de Eduardo Guimarães sobre a influência dessas medidas no setor de óleo e gás.
Valor: Do resultado final – seminários e artigos publicados – brotam mais dúvidas ou mais certezas a respeito do que é preciso fazer em matéria de política industrial e seu entorno de política econômica? Teriam surgido indicações claras, por exemplo, no que se refere a papéis que devem caber ao Estado? (além do que têm sido as funções tradicionais do BNDES) e à iniciativa privada?
Monica: O tema recorrente é esse que abordei continuamente ao longo desta entrevista:a inserção do Brasil nas cadeias globais de produção de manufaturados. Embora existam divergências sobre a melhor forma de fazer isso, há uma visão unânime de que a abertura da indústria brasileira é condição necessária para sua expansão e modernização. Nesse sentido, cabe ao Estado facilitar esse processo e não impedi-lo, como tem sido a regra.
Não é um processo fácil. Determinados setores produtivos talvez não tenham a capacidade de adequar seus níveis de competitividade para sobreviver à concorrência externa. Todavia, a evolução depende de algum grau de “destruição criativa”, no sentido Schumpeteriano mesmo. Veja os casos das indústrias mais bem-sucedidas mundialmente, como a alemã e a sul-coreana. Em ambos os casos, setores diminuíram de tamanho e importância para dar lugar àqueles que teriam maior capacidade de competir e de usufruir dos mercados globais. A Alemanha, por exemplo, reestruturou todo o seu parque industrial nos anos 80 e 90 para se aproveitar das oportunidades que apareceriam com o surgimento da China como potência econômica global.
Valor: A crise de 2008 e seus desdobramentos trouxeram incertezas sobre o futuro da economia internacional que parecem longe de ser superadas. É uma situação que turva perspectivas e põe sob risco maior a qualidade de decisões de governo, no Brasil, no que se refere a políticas de prazo mais longo – inclusive e particularmente naquilo que implica relacionar-se com economias avançadas, que procuram, elas próprias, vencer aquelas incertezas. Nesse quadro, que importância teria, para o desenvolvimento brasileiro, uma internacionalização maior da economia, tanto comercial como financeira, estabelecida desde já, com eventuais medidas de efeito imediato?
Monica: A internacionalização da economia brasileira é fundamental para o seu avanço, sobretudo nesse mundo incerto que sobreveio da crise internacional. Já não podemos contar com a demanda dos países maduros por nossos produtos; portanto, temos de nos integrar comercialmente com o eixo emergente. É isso que estão fazendo alguns de nossos pares latino-americanos, como o México, o Chile, o Peru.
Se o Brasil quiser fazer jus à sua importância global como uma das maiores economias do mundo, precisa abandonar essas ideias antiquadas de reserva de mercado, conteúdo local e protecionismo. Nada disso funcionou a contento no passado. Não há motivo para crer que funcionará agora, num mundo em que a indústria e os processos produtivos são cada vez mais integrados. A China já está trilhando esse caminho. Não só porque possui um grau de abertura comercial maior do que o nosso, como também porque está plenamente engajada no processo de internacionalização do yuan.
Não é à toa que tem feito diversos acordos de “swaps” bilaterais de moeda com bancos centrais mundo afora – inclusive, com o Banco Central brasileiro. É nessa direção que precisamos andar. Mas, para isso, precisamos remover as barreiras que criamos, sobretudo as mais recentes, adotadas para proteger, erroneamente, a indústria.
Valor: Há divergências entre os economistas a respeito do próprio conceito de desindustrialização, seus fatores determinantes e modos de entender a questão no quadro mais amplo das relações globais da economia brasileira. São divergências em boa parte alimentadas por visões políticas diferentes de Brasil e de mundo — indo além, portanto, de avaliações puramente técnicas – que afloraram com maior nitidez à medida que a crise de 2008 se desdobrava, chegando aos dias de hoje. Essas diferenças de posições intelectuais e políticas tendem a aumentar ou a diminuir?
Monica: A inexistência de uma solução imediata para os problemas dos países desenvolvidos tem suscitado todo tipo de experimentalismo no âmbito das políticas macroeconômicas, e, não surpreendentemente, o retorno de um certo viés protecionista. O governo brasileiro tem usado de forma oportunista essa plataforma para alavancar medidas que já faziam parte do tipo de pensamento que predominava entre nossos atuais dirigentes antes da crise de 2008. Mas isso não significa, inequivocamente, que todos têm de caminhar na direção do protecionismo e do fechamento de setores produtivos. Como já sublinhei, há países aqui na nossa vizinhança que estão fazendo o contrário, que têm uma visão mais ampla do problema, que sabem que, se não puderem mais contar com o poder do consumidor americano ou do europeu, podem contar com a força do próprio consumidor latino-americano e dos asiáticos.
Será uma pena, um grande desperdício, se continuarmos tentando ecoar o que vemos nos países que foram diretamente afetados pela crise de 2008 e seus desdobramentos, em vez de buscar o nosso próprio rumo