segunda-feira, 5 de novembro de 2012







































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A questão da população de rua em São Paulo
Enviado por luisnassif, seg, 05/11/2012 - 09:17

Por Armando Tambelli

Prezado Nassif

Para colaborar com São Paulo nesta transição.

Um tema nada abordado, pelo menos nas perguntas feitas nas inúmeras entrevistas e que nos debates das eleições municipais não apareceu é o da população de rua. Este assunto é responsável por muitas “pérolas”, vamos tentar não produzir mais uma. Como ponto de partida vamos esquecer estes oito últimos anos; tirando alguma coisa aqui e ali, não se salva praticamente nada.

Embora não pareça para muitos, não existe apenas uma população de rua, portanto não há apenas uma política que dê conta de quem se encontra nesta situação. E mais: há que se trabalhar com a hipótese de que sempre haverá um contingente de pessoas que estarão na rua por motivos variados e, por mais que seja difícil de aceitar ou compreender, acabará ficando na rua por opção, por estar como que institucionalizado às avessas. A rua é sua casa, seu trabalho, onde encontra uma nova família, companhia, etc. e etc. Portanto, “gente de rua” sempre teremos, o que torna qualquer política pública para e com este povo, permanente.

Temos na rua famílias inteiras, estas sempre por menos tempo; homens, mulheres, velhos, jovens, ex-trabalhadores formais ou não, ex-presidiários, gente que não conseguiu retornar ao mercado de trabalho e a rua foi engolindo, gente envergonhada de voltar para casa ou para sua terra, gente que não tem para onde voltar, bebuns em todos os graus, pacientes psiquiátricos variados, estes último em maior número; e ainda, gente desiludida, que se derrotou ou foi derrotada, e gente que resolveu que não queria mais continuar como estava seja lá como estivesse. Certamente não se foi para rua porque deliberadamente se quis, mas, alguns, assim foram permitindo que a coisa fosse ou ficasse.

Há a população das drogas e entre elas há o crack e há quem não é necessariamente da rua e as consome nela já sem nenhum pudor ou controle.

Neste ponto das escalas de quem está na rua, vamos pegar um tipo clássico para estudar resumidamente o caso: é muito comum quando se trabalha com este povo perceber quem acabou de chegar. Este é um dos tipos em que se constata que a coisa não precisava ser desse jeito. Ele sente que não é desse mundo, fica afastado, não quer se misturar. É interessante que ele não queira ajuda também, ainda tem certo tipo de orgulho, crê que é temporário. O sujeito ainda não está com a roupa puída, o sapato encardido, as unhas de carvoeiro, o cabelo ensebado, etc. É triste vê-lo despencando, perdendo a trouxa e demais objetos, depois os documentos, apanhando dos outros companheiros por não conhecer as regras, apanhando da polícia que os chamam de pudins e apanhando muito de milicianos, e assim vai. Estes ex recém-chegados eram os clientes mais tradicionais dos albergues. Eles ainda acreditavam na organização da vida principalmente dentro da ordem que nós acreditamos e propagamos mesmo que efetivamente nunca tenha tido nada. Mas, o tempo começa jogar contra e os albergues eram representantes da ordem. Como não sabia que tinha hora para tudo e que não podia chegar bêbado, não chegava na hora porque não sabia e começa a ficar bêbado porque dói dormir na rua e afunda-se na cachaça porque ameniza. Ás vezes ainda tem vergonha de pedir, diz que é trabalhador, mas vai aprendendo como funcionam as bocas de rango, quais os melhores trechos para transitar, as melhores estratégias para pedir esmola, etc.  No meio da noite vai perdendo o controle sobre tudo, seu sono incluído. Vai descobrindo que é melhor dormir debaixo de uma marquise em lugar claro e movimentado, ás vezes melhor de dia, que não deve urinar e defecar perto de onde vai dormir e que é bom deixar tudo limpo de manhã que o proprietário não manda bater. Toma banho nas frestas dos barrancos com vazamentos e lava a roupa se der. Vai aprendendo como funcionam as entidades que ainda existem e dão algum apoio. Aprende principalmente como usufruir da culpa de muitas delas, ou como responder ao que querem para poder ter alguma coisa. Se puderem controlar alguns traços da personalidade que a rua vai temperando, pode obter algo mais destas entidades. Aliás, aprende que pode comer muito na rua. Até demais e descobre que trocaria a maior parte desta fartura por um sabonete ou papel higiênico de vez em quando, nem que seja para lembrar como é que era. Alguns escovam os dentes ainda, mas são poucos os que levam comida para o povo da rua que lembram isso. Vai aprendendo a marcar seu território, se associar, ter um ou mais cachorros, deixar as paradas pelos trechos e quem é do bem e de quem fugir. Sabe quais os comerciantes que dão coisas porque são legais ou porque não o querem por perto. Fica doente da boca, olhos, pele, estômago, fígado, ânus, etc. separadamente, aos pares, tudo ao mesmo tempo. Ás vezes é tratado na saúde pública, ás vezes, fica na porta sendo castigado porque é um bêbado, mijado e cagado.

Ótimo, pode estar meio caracterizado demais, mas é por estes caminhos que quem está na rua vai entrando e é um beco para a maioria sem volta.

Não se pode confundir esta população com a população dos consumidores de crack. Todos são povo de rua e é certo que entre os consumidores de drogas há população tradicional de rua, mas é minoria. O problema principal dos não consumidores de drogas é com a marvada. Consumidores de crack pertencem a outro perfil em que pode ter havido como resultado a rua, mas não é o que apontam os trabalhos com esta população especificamente. A maioria do povo do crack que aceita tratamento para o vício volta para casa ou é acompanhado por algum familiar no tratamento. Para quem é do outro espectro, dificilmente se achará algum familiar, e se achar vai ser difícil a retomada da vida anterior.

Políticas públicas para este povo todo não é tarefa policial, qualquer tipo de polícia. A polícia tem que apoiar em muitos casos, mas não é ela quem deve se responsabilizar por nada da elaboração ou implementação de qualquer que seja o projeto. Entidades de todo tipo e os grupos e pessoas de boa vontade também podem e devem ser chamados a colaborar, integradamente se possível. Porém o protagonismo deve ser desta própria população. Eles têm e sabem o que dizer a seu próprio respeito.

Para começar é necessário se retomar o trabalho com o povo de rua na rua. Retomar os grupos interdisciplinares de estudo e trabalho, mapear novamente os trechos e concentrações, estabelecer os pontos de apoio a esta população no trecho em que circulam, reativar os centros que existiam e distribuí-los melhor, retomar a articulação da rede de entidades que já trabalham com este povo, apoiar a população que quer colaborar com os seus “louquinhos” de estimação – quase todo mundo tem os pedintes que tem algum trecho perto de casa,etc.etc.etc. Rever as estratégias de albergamento, casas de apoio, rede de saúde especializada nesta população, Boracea, centros de convivência, cooperativas, etc.

Para o crack idem, ibidem. Rever toda a estratégia, os agentes, as políticas, a abordagem, as razões, etc. etc.

Geralmente fazemos excessivo juízo moral sobre quem esta na rua e até aí tudo bem, pois hoje em dia todo mundo tem opinião para tudo sabendo muito pouco; mas o que não dá e para os agentes públicos agirem desta forma. Portanto não é qualquer profissional que deve encabeçar elaborar ou executar estas políticas. Tem muita gente que conhece do riscado e que naturalmente voltará a participar se vir seriedade do governante e de quem é responsável pelo trabalho.

O principal é o veemente repúdio a qualquer forma de higienismo e controle ou remoção forçada; o repúdio também a qualquer tipo de afirmação de prevalência de modelos de vida como premissa moral para a ação do estado; e o reconhecimento destes homens e mulheres como sujeitos de direitos em situação vulnerável que não necessitam de pena jurídica, física ou moral, mas de políticas que facilitem a que vivam felizes, em paz e como acharem melhor

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