quinta-feira, 18 de outubro de 2012


O debate sobre as relações entre ética e política
Enviado por luisnassif, qui, 18/10/2012 - 11:15
Por Jotavê
O editorial de hoje da Folha de São Paulo pode servir de base a uma discussão interessante a respeito das relações entre ética e política e das relações entre dois valores éticos muitas vezes concorrentes: a igualdade e a liberdade. Desde a década de 80, estamos metidos num imbroglio conceitual imenso, no qual se confundem valores éticos com valores políticos (o caso do mensalão é um bom exemplo disso), e se pretende enfiar à força, nas configurações econômicas vencedoras, uma valoração ética positiva, como se o Espírito marchasse triunfante após a "Queda do Muro", portador de uma vitória que é a um só tempo política e moral. Comentei ponto a ponto o texto da Folha de São Paulo para que os diferentes níveis de valoração sejam distinguidos, e a confusão conceitual torne-se evidente. Meus comentários estão em itálico:

Da Folha

Cuba "livre"

Em 9 de novembro de 1989, numa entrevista coletiva confusa, o porta-voz do governo socialista da Alemanha Oriental, Günter Schabowski, anunciou a suspensão das restrições de viagem a Berlim Ocidental. Na falta de detalhes, em poucas horas multidões afluíram aos postos de controle e cruzaram a fronteira que dividia a Alemanha.

O episódio mítico é evocado logo no início do texto: a Queda do Muro. No êxodo em massa dos cidadãos da Alemanha Oriental estaria inscrita toda uma ética da liberdade: a fuga dos corpos seria apenas a expressão visível da opção dos espíritos pela Liberdade como valor supremo. É contra esse pano de fundo mitológico que o artigo todo se articula.

Vamos falar claramente. O êxodo se deu em função da enorme diferença econômica existente entre as duas Alemanhas, e não em função de haver "democracia" de um lado e "ditadura" de outro. Se a ditadura fosse próspera, cheia de bens de consumo e de empregos, e a democracia tivesse como pano de fundo uma economia decadente, o êxodo seria no sentido OPOSTO. Niguém fugiu em direção à liberdade. O que ocorreu foi uma fuga em direção à PROSPERIDADE. Se amanhã abrissem as fronteiras do México com os EUA, milhões de mexicanos "fugiriam" para os EUA da mesma maneira. Continuariam fugindo mesmo se Hitler estivesse no poder.

Nada comparável à queda do Muro de Berlim acontecerá em Cuba, contudo, após o comunicado de 16 de outubro de 2012. Mais prudentes e organizados que os camaradas alemães-orientais, os próceres da ditadura cubana anunciaram apenas um relaxamento pragmático do controle que pretendem manter sobre seus cidadãos.

As situações são incomparáveis. Num caso, você tinha um país dividido artificialmente que se reunificava. Mesma língua, mesma história, mesma população. No caso de Cuba, você tem uma economia com uma altíssima ineficiência comparativa grudada no país mais próspero do planeta. Mas não há nenhuma "unificação" no horizonte, nem muito menos uma "reunificação". Os líderes cubanos não são mais "prudentes" e "organizados". Lidam com outra situação. Só isso.

As mudanças fundamentais nas regras para deixar o país são duas. Extinguiu-se a exigência da odiada "carta blanca", uma permissão de viagem pela qual cada cubano tinha de pagar cerca de US$ 150, e de uma carta-convite expedida por embaixadas cubanas nos países visitados, cujo custo podia alcançar US$ 200 (um salário típico em Cuba fica em torno de US$ 20). A segunda alteração foi ampliar de 11 para 24 meses o período máximo de permanência no exterior. Em contrapartida, cada cidadão interessado em viajar terá de trocar de passaporte a partir de 14 de janeiro de 2013, quando a medida entra em vigor.

Cuba dificulta a saída de cidadãos porque, de outra forma, sua mão-de-obra mais qualificada sairia do país, em busca dos salários norte-americanos. Haveria uma fuga em massa de médicos, engenheiros, professores, e os EUA saberiam aproveitar a chance para dar um golpe de misericórdia no regime cubano. Os cidadãos não são impedidos de sair porque Cuba é uma ditadura (coisa que ela inegavelmente é). São impedidos de sair porque a ECONOMIA cubana é absurdamente INEFICAZ, se comparada à dos EUA.

"Reforma migratória" é, de fato, uma expressão mais adequada para designar o passo burocrático dado pelo regime de Raúl Castro. Outras reformas liberalizantes --nenhuma revolução-- vêm sendo empreendidas a conta-gotas pelo ditador, como a autorização para compra e venda de automóveis, pequenos negócios e propriedades privadas diminutas no campo. Nessa toada, Cuba se tornará uma democracia lá pelo século 22.

As reformas "liberalizantes" de Cuba seguem mais ou menos na mesma toada que as reformas sociais no interior do capitalismo. Se o problema é ÉTICO (e não ECONÔMICO), a situação é perfeitamente simétrica. Há um valor ético - a liberdade - que só a conta-gotas ganha lugar na sociedade cubana. Há um outro valor ético - a igualdade - que só a conta-gotas ganha lugar nas sociedades capitalistas. (Se tem alguma dúvida, olhe à sua volta.) No plano dos valores, estamos todos no mesmo barco (com alguma vantagem para Cuba, já que igualdade é argumentavelmente um valor SUPERIOR à liberdade, pois é condição para o exercício pleno desta última). É no plano da EFICIÊNCIA ECONÔMICA que o socialismo cubano perde. E, aí, perde FEIO.

Castro, como o irmão Fidel, não dá ponto sem nó. Avisou que a aparente liberação das viagens já nasce com exceções, destinadas a "preservar o capital humano criado pela Revolução" e a proteger a segurança nacional. Tradução: médicos, pesquisadores, atletas e dissidentes continuarão impedidos de deixar o país.

Ninguém dá ponto sem nó. Nem Fidel Castro, nem minha tia Wanda. Todo o ponto da proibição é e sempre foi esse: "preservar o capital humano criado pela Revolução". A proibição não é decorrência da natureza totalitária do regime. É decorrência de sua ineficácia econômica.

A interpretação mais corrente das medidas anunciadas em Havana indica como seu verdadeiro objetivo facilitar as viagens daqueles poucos cubanos --uma incipiente "classe média"-- com dinheiro para realizar viagens de turismo, ou interessados em fazer compras no exterior para incrementar negócios nascentes na ilha. Até mesmo alguma emigração passaria a ser admitida por Castro, sobretudo para os Estados Unidos, de onde flui para Cuba uma corrente cada vez mais caudalosa de dólares em remessas para familiares. O fluxo, que em 2004 era de cerca de US$ 1 bilhão ao ano, já está estimado em US$ 2,3 bilhões anuais.

Aqui, a análise está correta. É disso que se trata - liberalizar um pouco os vistos para permitir um maior ingresso de dólares. Qualquer país faria o mesmo. Note-se, porém, que esta observação economicamente correta serve apenas para introduzir uma conclusão moralista, que repõe as questões no lugar ERRADO:

Pode-se prever, nas novas condições, que aumentará o fluxo de cubanos para o estrangeiro, mas nada que se equipare a um êxodo. O regime insular dos irmãos Castro continuará negando aos cubanos um direito básico da pessoa, a liberdade de ir e vir.

E o nosso regime continua negando à maioria dos brasileiros um direito básico da pessoa: sua igualdade em relação a todas as outras pessoas. Nós violamos esta regra básica da ética em nome da eficácia econômica introduzida pela desigualdade. É uma questão pragmática, só isso. As pessoas trabalham mais e melhor quando mandamos a ética às favas e admitimos um alto grau de desigualdade nas relações sociais. É com esta tensão ÉTICA que o capitalismo é obrigado a conviver (e, caso ela fosse reconhecida enquanto tal, é com essa tensão que seríamos obrigados a lidar). O discurso da Folha de São Paulo camufla essa tensão, traduzindo automaticamente superioridade econômica em termos de superioridade ética, como se houvesse uma situação eticamente aceitável aqui e eticamente inaceitável lá. O que há é uma situação ECONOMICAMENTE INSUSTENTÁVEL em Cuba, e uma tensão ÉTICA constitutiva do capitalismo que está aí, e precisa ser VISTA para que possamos pensar no que fazer a respeito dela.

 
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