terça-feira, 16 de outubro de 2012

Um trecho de A Trégua, de Primo Levi
Enviado por luisnassif, ter, 16/10/2012 - 13:34
Por jc.pompeu
Comentário ao post "Os caminhos do desenvolvimento - 1"
Os caminhos do desenvolvimento, numa Europa então arrasada esfomeada pela Segunda Guerra, na crônica factual de um sobrevivente judeu do holocausto
"O trabalho era o fundamento da sua ética, que ele sentia como um sacro dever que compreendia num sentido mais amplo. Era trabalho tudo e apenas aquilo que traz lucros sem comprometer a liberdade. O conceito de trabalho compreendia pois, além de algumas atividades lícitas, igualmente, por exemplo, o contrabando, o furto, a trapaça (mas não o roubo: não era um violento). Considerava, todavia, censuráveis, porque humilhantes, todas as atividades que não comportavam iniciativa ou risco, ou que pressupunham uma disciplina e uma hierarquia: toda relação de trabalho, toda prestação de serviço, conquanto bem retribuída, ele a assimilava totalmente ao "trabalho servil". Mas não era trabalho servil arar o próprio campo, ou vender falsas antiguidades no porto aos turistas.
Quanto às atividades mais elevadas do espírito, ao trabalho criativo, demorei a compreender que o grego se dividia. Tratava-se de opiniões delicadas, que mereciam análise caso a caso: era lícito, por exemplo, perseguir o sucesso em si mesmo, ainda que vendendo falsa pintura ou subliteratura, ou ainda que prejudicando o próximo; censurável obstinar-se em perseguir um ideal não lucrativo; pecaminoso retirar-se do mundo em contemplação; era lícito, todavia, aliás recomendável, o caminho de quem se dedica a meditar e adquire sabedoria, contanto que não considere obrigação receber gratuitamente o próprio pão da Sociedade Civil: a sabedoria é também uma mercadoria; e pode e deve ser trocada.
Mordo Nahum (era um judeu grego) não era um estúpido, e percebia claramente que esses seus princípios podiam não ser compartilhados por indivíduos de outra proveniência e formação, como no meu caso;  estava, porém, tão firmemente persuadido do que acreditava, que a sua ambição era traduzir em ações as próprias ideias, para demonstrar-me a validade geral.
Conclusão: minha proposta de permanecer tranquilo e esperar o pão dos russos só podia parecer-lhe detestável; porque era um "pão não conquistado"; porque comportava uma sujeição; e porque toda forma de ordem, de estrutura, era para ele suspeita, quer resultasse no pão cotidiano, quer no salário no fim do mês.
Segui, portanto o grego até o mercado; não tanto porque estivesse convencido pelos seus argumentos, mas por inércia e curiosidade. Na primeira noite, enquanto eu navegava num mar de vapores vinosos, ele se informara diligentemente sobre a localização, os hábitos, as tarifas, as demandas e as ofertas do mercado livre de Cracóvia, e o dever o chamava.
Partimos, ele, com a mochila (que eu carregava), eu, dentro de meus sapatos arruinados, em virtude dos quais cada um de meus passos tornava-se problemático. O mercado de Cracóvia florescera espontaneamente, logo após a passagem do front, e em poucos dias invadira todo um quarteirão. Vendia-se e comprava-se de tudo, e toda a cidade frequentava o mercado: burgueses vendiam móveis, livros, quadros, roupas e prataria; camponeses, agasalhados como colchões, ofereciam carne, frangos, ovos, queijo; meninos e meninas, nariz e rostos vermelhos por causa do vento, buscavam apreciadores para as rações de tabaco que a administração militar soviética distribuía com extravagante munificência (trezentos gramas por mês a todos, incluindo os bebês)".
A Trégua, de Primo Levi

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